sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A forma do bem


A forma do Bem descrita na República


Seria muito importante observar aqui sobre a relação entre os termos "Bem" e "Belo", os quais aparecem em algumas passagens dos Diálogos com conotações semelhantes, tais como no Lísis 216d assim como no Banquete. Aliás, neste último, o discurso de Diotima reverencia o Belo na mesma proporção em que Sócrates reverencia o Bem na República. Por esse motivo, ambos são aqui empregados como sinônimos, se bem que atentamos para que cada um deles esteja adequado em seu respectivo contexto. De acordo com Jaeger, o Belo e o Bem constituem "dois aspectos gêmeos de uma única realidade, que a linguagem corrente dos gregos funde numa unidade, ao designar a suprema arete do Homem como 'ser belo e bom' (καλοκαγαθία).[1]

Gláucon, ainda nas primeiras partes da República, já havia antecipado algumas espécies de bem, que, de acordo com o contexto, não se referem, de fato, ao Bem metafísico e, sim, ao bem no seu sentido cotidiano. Uma é aquela espécie que as pessoas desejam, não visando a uma outra consequência, senão àquele próprio Bem; por exemplo, a alegria e o prazer, os quais são buscados para o momento presente e são bons em si; a outra espécie é a que almejamos por si mesmo e também pelas suas consequências, tais como a sensatez, a vista e a saúde; a terceira é aquela espécie que, de fato, é benéfica apenas nas suas consequências, visto que a sua prática requer sacrifícios, por exemplo, a ginástica e a dieta que se usam no tratamento de doenças. Nós não o praticamos por amor a eles mesmos, mas às suas consequências[2].

É, entretanto, em 504d, no livro VI da República, que Sócrates começa o interessante tratado acerca do bem em sentido metafísico[3]. De início, ele e seus interlocutores já percebem a dificuldade do tema e a sua circularidade. Para muitos, o Bem é um prazer, e, para alguns, é o conhecimento, porém esses, quando interrogados sobre o que seja o conhecimento, acabam cometendo uma certa redundância porque dizem que é "o saber do bem[4]", o que é explicitamente ridículo. Por outro lado, os que o definem com o prazer se contradizem, porque concordam que há prazeres bons e maus; logo, isso significa que ele seja bom e mau ao mesmo tempo. E ainda uma outra dificuldade ocorre quando alguém censura outrem por não conhecer o bem e, no entanto, começa a falar como se aqueles que o ignoram já o conhecessem[5].

Ora, se o próprio Bem é a causa de todo o conhecimento, como poderia ele ser objeto do conhecimento? Apenas em dizer "conhecimento do bem" já o transformamos em objeto do conhecimento. De acordo com González, conhecimento do Bem, necessariamente, constitui-se em conhecimento do conhecimento.[6] Aqui há, evidentemente, ainda, uma circularidade, porém não viciosa, uma vez que se trata apenas da questão que envolve conhecer o Bem na condição de que o conhecimento em si seja goodlike.[7] Para González, a dificuldade em torno do Bem aparece na República da mesma forma como aparece nos demais Diálogos, diferindo, apenas, que na República aparece uma certa solução[8]. Conhecendo o Bem, nós também conhecemos o conhecimento, pois o conhecimento, com efeito, é goodlike. Na verdade, ao conhecer o Bem, nós conhecemos algo mais que o conhecimento. Nós conhecemos as formas por meio de idealização, e o Bem é o princípio que faz tal idealização possível[9]. Se quiséssemos dar um nome para este tipo de conhecimento que envolve o fato de conhecer o próprio Bem, não haveria outro nome melhor, diz Gonzáles, do que "conhecimento dialético"[10].

É bom lembrar que o Bem é uma forma, aliás, a mais elevada de todas. O panegírico que lhe é dirigido é, às vezes, tão requintado que, de fato, deixa transparecer uma espécie de divindade e, por pouco, até um monoteísmo. Tal como a forma do Bem, Deus, sendo bom, jamais pode ser a causa de todas as coisas, conforme crê o vulgo, mas é apenas o causador das coisas boas. Aquilo que é bom em momento algum será prejudicial, mas sempre bom; logo, o Bem nunca é a causa do mal.

E de igual modo, Deus, consoante às formas, é imutável, de modo que não se pode tornar pior nem melhor, pois já é perfeito. Essa é, aliás, a razão de Platão censurar as histórias nas quais Deus se metaformoseia[11]. Ele chega a ser mais elevado que a própria justiça, que, aliás, está contida no próprio título do Diálogo em questão. Chega a suplantar também a temperança, a prudência e a fortaleza, em síntese, é mais elevado que as próprias virtudes cardeais. O Bem, de acordo com Pietre, "designa Deus, termo supremo do conhecimento e garante a verdade desse conhecimento. Entretanto ele não designa um deus mitológico, astral, ou um objeto de culto determinado[12]".

Na concepção de Reale, ele é o Deus impessoal no contexto platônico[13]. Nickolas Pappas, entretanto, assegura que, para Platão, a forma do Bem não se trata de Deus e, sim, de uma Forma de "Formidade", isto é, uma Forma de formas. No vocabulário do livro V, uma forma é aquilo que é, porém a forma do Bem é aquela que está acima do Ser, o que quer dizer que ultrapassa todas as outras formas[14].

Enfim, a forma do Bem é o objeto último do conhecimento filosófico. Sem a visão dele no ápice da procura da verdade, a filosofia não poderia alcançar uma visão em conjunto. Qualquer ser vivente, por menor que seja, sempre procura o bem próprio. Neste caso, ele visa se reproduzir e perpetuar a vida. "Cada um de nós deseja o Bem, mas se limita a um bem estreito (o bem da saúde, das honras, o bem material). O bem da alma só pode elevar-se à contemplação do Bem. E tal objetivo constitui, para o filósofo, o fim último da ciência, isto é, a dialética"[15].

Quando Sócrates discursa, seus interlocutores estão assaz curiosos e ávidos por ouvi-lo sobre tão intrigante assunto. Sócrates hesita em prosseguir, mesmo sob a insistência de seu amigo Gláucon, exatamente a quem ele declara ser incapaz de acompanhá-lo, em decorrência da complexidade do tema. Adimanto não esconde a sua curiosidade: "Mas quanto a esse estudo mais elevado e ao objeto que lhe atribuis, julgas que alguém te largará sem te perguntar qual é[16]?"

Poderíamos possuir tudo, ou quase tudo, porém, se nos faltasse apenas o Bem, vantagem nenhuma teríamos, ou seja, nada ganharíamos se possuíssemos multidões de coisas, não sendo elas boas. De igual modo, poderíamos conhecer tudo quanto há, mas, se não conhecêssemos a forma do Bem, proveito nenhum teríamos[17]. Na sua descrição sobre o Bem, Sócrates deixa transparecer um discurso e um estilo, mais ou menos, esotérico. Na verdade, o calar socrático em relação à forma do Bem subentende-se uma espécie de esoterismo. Neste caso, estamos falando do silêncio dos filósofos pitagóricos, de quem Platão, com efeito, herdou o seu esoterismo[18].

Nas partes finais do livro VI e no início do VII, Sócrates esquiva-se da definição desse ser tão enigmático, ou seja, protela e, depois, então, resolve expor não sobre o Bem, mas sobre o Filho do Bem, o Sol. Eis que o Sol é o senhor da vida e do bem no mundo sensível, o causador das estações e dos anos etc. Caso alguém capacitado e entendido no assunto quisesse nos falar diretamente sobre este Bem, provavelmente ficaríamos com os olhos completamente ofuscados, ou talvez cegos, o que quer dizer que nada compreenderíamos. A essa explicação sobre o Filho do Bem Sócrates chama de juros, enquanto que o capital, o próprio Bem, fica assim adiado: "Receberei portanto este juro e este filho do Bem em si".[19]

Aprofundando a questão ainda mais, Sócrates admite, paradoxalmente, que o Bem é mesmo mais elevado que o próprio Ser[20]. Tudo isso é uma "transcendência tão divinal"[21], diz Gláucon, e insaciável que era por sabedoria, pede ao mestre para retornar ao assunto do Sol, mas é nesse momento que Sócrates inicia uma outra alegoria, a da Linha, e logo na sequência, a da caverna. Provavelmente, o maior paradoxo que daí decorre é a afirmação de que o Bem seja superior ao próprio Ser ou de que ambos não sejam o mesmo. Essa declaração é, sem dúvida, uma questão bastante difícil. Aqui, ao que parece, Platão realmente nega que a forma do Bem seja o Ser, do mesmo modo que nega que o próprio Sol seja a geração. Estamos tratando, sem dúvida, de uma exceção na opinião geral de Platão quanto à causação[22]. Tal declaração também pode significar o início de uma mística teológica. Seria exatamente esta passagem que mais tarde Plotino usaria para elevar o Bem ao princípio divino[23].

Considerando, ainda, o carácter ontológico da forma do Bem, seria importante citar aqui a análise de Francisco González em torno da leitura de três outros autores: Wieland, Ferber e Ebert. As três podem ser complementadas, bastando apenas acoplá-las, ou seja, recorrer a uma quando a outra não bastar. A leitura principal de Wieland é a de que o Bem não é um objeto de conhecimento teorético, mas de um conhecimento que governa o uso do conhecimento de qualquer objeto, ou seja, trata-se de um conhecimento prático. Para González, entretanto, o Bem em Platão não é meramente um princípio prático; é, antes, uma realidade objetiva. Essa insuficiência é contornada por González com a leitura de Ferber e Ebert, para quem as formas são ideais, isto é, não apenas são as coisas que são, mas as coisas que deveriam ser. As formas, a princípio, são normas e não apenas as ideias em sentido tradicional; são deonta e não apenas onta. As formas são, portanto, diferentes normas, porém o Bem é a forma que possibilita a existência e a intelegibilidade de uma norma. A concepção de Ebert, diz González, é de que a forma do Bem tem, antes, a função de excluir e não de determinar. A forma do Bem exclui as imperfeições e é responsável pela revelação dos conceitos que então funcionam como norma[24].

No Diálogo Hípias Maior, Platão também trata do Belo. Ali, o interlocutor de Sócrates, cujo nome leva o título do Diálogo, é indagado sobre o que seja o Belo[25]. Suas respostas, quase todas, consistem de exemplos por meio dos quais a opinião comum também compreende por viver eticamente bem e feliz. Sócrates, estulto como sempre, refuta todas as respostas do célebre sofista e procura deixar claro que o que lhe interessa é uma resposta, mais ou menos objetiva, que não se utilize de exemplos e na qual não haja nenhum indício de contradição. Quase todas as respostas de Hípias foram, com efeito, inteligentes, mas não conseguiram convencer um Sócrates assaz metafísico para o seu tempo. Hípias, naturalmente, irrita-se e acusa Sócrates de se ocupar com uma reflexão sem utilidade prática. Sócrates, por sua vez, não dá uma definição sobre o Belo, mas fica boquiaberto por perceber que uma pessoa tão sábia como Hípias e que vive ensinando por toda Hélade sobre coisas grandiosas não saiba dizer o que seja o belo, uma questão tão primordial.

Até aqui podemos perceber que, de certo modo, nenhuma resposta clara tivemos e que Platão, com muita habilidade, escapa e não define uma das suas grandes doutrinas[26] e, consequentemente, termina um bocado insuficiente. Se, na República, a aporia não aparece, a insuficiência ou, talvez, uma não determinada explicitação parece substituí-la. Guthrie, aliás, observa que a tão sublime ascensão da caverna, a qual culmina na contemplação da forma do Bem, na verdade, não foi percorrida nem mesmo por Sócrates. O que Platão faz em determinadas passagens da República é tentar explicar em termos filosóficos aquilo que na sua formação é, de fato, pitagórico. As caracterísitcas tão requintadas e absolutas atribuídas à forma do Bem, assim como a sua função soberana, têm, na verdade, um peso muito mais religioso do que racional[27]. Nesta altura, seria importante fazer referência a uma das soluções que os estudiosos do platonismo apresentam nos dias atuais, a qual se encontra nas chamadas "doutrinas não escritas".




A forma do Bem de acordo com as Doutrinas não Escritas[28]


Nesta seção, limitar-nos-emos apenas à questão da forma do Bem. Quanto aos detalhes da origem dessa escola e aos argumentos diversos que lhe dão suporte, não nos convém aqui desenvolvê-los. De acordo com a escola de Tübingen, o mistério que envolve a questão do Bem pode ser explicado e resolvido pelo conhecida doutrina esotérica[29] de Platão, também chamada de "doutrinas não escritas" (άγραφα δόγμαθα). Essa escola foi, de facto, quem resgatou e trabalhou essa teoria e, segundo os seus estudiosos, havia para Platão determinadas doutrinas que não convinham à escrita, mas unicamente à oralidade. Essa doutrina visava aos ouvintes da Academia que já se encontravam numa certa altura da iniciação filosófica. A escola de Tübingen[30] possui argumentos diversos na comprovação dessa interpretação. Ela fez, por assim dizer, exotérico ao que era esotérico. O próprio Aristóteles, no livro da Física, "diz-nos que esses ensinamentos que Platão comunicava só por meio da 'oralidade' eram chamados 'doutrinas não-escritas' (άγραφα δόγμαθα)"[31].

Duas passagens do Fedro e da Carta VII são tidas como fortes bases para argumentar que Platão não escreveu sobre determinadas coisas, visto serem por demais delicadas. De modo sucinto, eis os trechos desses Diálogos que soam como prova de que há um Platão esotérico:


De mim pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre semelhante matéria. Não é possível encontrar a expressão adequada para problemas dessa natureza, como acontece com outros conhecimentos [...]. Se me parece necessário deixá-las ao alcance do povo, que poderia haver de mais belo na vida do que divulgar doutrinas tão salutares, e esclarecer os homens sobre a natureza das coisas? Porém não acredito que de tais explicações advenha proveito para ninguém, com exceção de alguns poucos, que com indicações sumárias, sejam capazes de descobrir sozinhos a verdade [...]. Por isso mesmo, nenhuma pessoa de censo confiará seus pensamentos a tal veículo, principalmente se este for, como é o caso dos caracteres escritos[32].

Tu, nesse momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não investate um remédio para a memória, mas para a memoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação[33].


A intrigante questão da forma do Bem teria agora a sua essência revelada: o Uno. Na verdade, o próprio Ser deriva do Uno, o qual é a medida de todas as coisas[34]. Aliás, é muito interessante, e também curioso, que o Uno, para essa escola, seja o causador do Bem, do Ser e também da Díade, a qual seria a representante do mal. Se bem que as doutrinas não escritas "não nos diz expressamente que a Díade fosse considerada tal em todos os níveis. Com efeito, seria difícil explicar como, nos níveis inteligíveis, onde a Díade age como princípio de diferença de gradação e multiplicidade, ela possa ser causa do mal em sentido verdadeiro e próprio e, sobretudo, de que tipo de mal [...]. No nível do inteligível, a Díade é a causa do negativo somente em sentido paradigmático e abstrato[35]".

Nesse sentido metafísico, o Uno e a Díade, evidentemente, não significam, respectivamente, o número um e o número dois; eles são, por assim dizer, metamatemáticos. A Díade, antes de qualquer coisa, "é o princípio e raiz da multiplicidade dos seres [...] é uma espécie de 'matéria inteligível', ao mesmo nos níveis mais altos [...]. Além de Princípio de pluralidade horizontal, é também Princípio de gradação hierárquica do real[36]". O Uno, a despeito de sua superioridade sobre a Díade, ainda precisa dela para a sua atuação. Atuando sobre a Díade, ele delimita aquilo que é ilimitado.

Reale lembra que o próprio Aristóteles já havia percebido que as formas não se enquadram como explicação última[37]. No primeiro livro da Metafísica, no capítulo VI, ele aborda o pensamento do mestre. Discute o problema dos Primeiros Princípios, dos quais derivam as formas, e esboça a estrutura das realidades supra-sensíveis do contexto platônico:


Sendo as idéias as causas dos outros seres, julgou por isso que os seus elementos fossem os elementos de todos os seres; e como matéria, são princípios o grande e o pequeno, como forma é o uno, visto ser a partir deles, e pela sua participação no uno, que as idéias são números. Ora, que o uno seja substância, e não outra coisa, da qual se diz que é una, Platão afirma-o de acordo com os pitagóricos e, do mesmo modo, que os números sejam as causas da substância dos outros seres. Mas admitir em lugar do infinito concebido como uno, uma díada, e constituir o infinito com o grande e o pequeno, eis uma concepção que lhe é próprio, como ainda pôr os números fora dos sensíveis [...]. Se Platão separou assim o uno e os números do mundo sensível, contrariamente aos pitagóricos, e introduziu as idéias, foi por consideração das noções lógicas [...], por outro lado, se ele fez da díada uma segunda natureza, é porque os números, à exceção dos ímpares, dela facilmente derivam como matéria plástica [...]. Tal é, pois, a conclusão de Platão sobre as questões que indagamos. É evidentemente, pelo que precede, que ele somente se serviu de duas causas: da do 'que é' e da que é segundo a matéria, sendo as idéias a causa do que é para os sensíveis, e o uno para as idéias[38].


Considerando a pluralidade das formas, surge, com efeito, a necessidade da unificação e delimitação na esfera do inteligível[39]. Parece, de fato, não se tratar de tarefa simples a solução deste problema, visto ocorrer a existência de formas não somente para as substâncias, mas sim para todas as qualidades, como, por exemplo, o Belo e o Grande. Assim como a multiplicidade das coisas sensíveis se explica pelas formas existentes para cada uma, a pluralidade das formas também requer uma unificação. Desse modo, surge a necessidade de uma outra metafísica, mais profunda, mais distante ainda do sensível, a qual é constituída pelo Uno e pela Díade indefinida, que são os Primeiros Princípios. Desses, então, procedem as próprias formas. Da polaridade entre os Primeiros Princípios derivam os entes, que são uma espécie de síntese "que se manifesta como unidade-na-multiplicidade[40]".




A forma do Bem via o eros dialético


Se, na República, encontramos a dialética um tanto isenta da questão do mito, no Fedro, no Banquete e também no Fédon, vemo-la, entretanto, inteiramente revestida de uma habitual linguagem mítica. A dialética, enquanto Eros, é analisada no plano do sentimento, mas, na República, é vista na ótica do conhecimento[41]. Aliás, até mesmo na República a linguagem mítica não está ausente, se bem que esteja em proporção menor[42].

Veremos, agora, a concepção da forma do Bem e, consequentemente, a dialética no Fedro e no Banquete. Nesses dois Diálogos, os seus personagens estão preocupados com a questão do Amor e cuidam-se para não cometer sacrilégio contra uma divindade tão magnífica, louvando-a da melhor forma que podem.

No Fedro, Sócrates ouve o discurso de Lísias, narrado por Fedro e, logo depois, refuta-o. Este, um pouco irritado, obriga-o a fazer um outro discurso melhor do que aquele. Sócrates obedece-lhe e compõe, então, um outro discurso quase no mesmo estilo, isto é, sustentando que se devem fazer favores aos não-apaixonados em detrimento dos apaixonados, uma vez que estes estão sempre destituídos de razão. Porém, logo em seguida, encontramos Sócrates totalmente preocupado e arrependido pelo discurso que acabara de fazer. Disposto a se purificar a qualquer custo, prontifica-se a fazer um outro discurso, sério e comprometido com a verdade. Agora, no entanto, parte por uma outra perspectiva, inversa da dos dois discursos, isto é, do dele e do de Lísias; ele entra para o campo dos iniciados e pretende falar com a ajuda de Deus, ou seja, inspirado, pois, há pouco, Deus havia sido impedido de falar e ofendido por dois simples mortais. "Graças ao delírio, surgiram os ritos catárticos e iniciáticos [...]. Os deuses desejam a suprema ventura daqueles a quem foi concedida a graça da loucura[43]".

A linguagem platônica surpreende, pois não só acolhe na filosofia o mito em escala homérica, mas também em escala órfica, onde nem mesmo o delírio é detido. Eis uma interessante passagem do Fedro, que pode muito bem representar o aspecto místico de Platão:


[...] o que foi recentemente iniciado e que outrora teve o dom de contemplar muita coisa, esse, quando vislumbra um rosto divino ou qualquer outro objeto que traga a recordação da Beleza, ou um corpo formoso, esse experimenta primeiramente uma espécie de tremor, e depois, uma certa emoção, semelhante à de outrora. Nessa altura volta o olhar para o objeto belo que assim o despertou, e venera-o, como se de um Deus tratasse[44].


A beleza física tem a capacidade, quando for o caso, de despertar a dialética no amante virtuoso. O Amor é, obviamente, quem desperta uma paixão profunda no amante, o qual, dia e noite, com determinação, não se desvia do seu intento, a Beleza [45].

Embora o Amor seja o maior dos prazeres e o mais penetrante, ele atua com moderação e harmonia[46]. A temperança, que sempre deve ser um atributo do verdadeiro filósofo, também faz sua presença na questão do próprio amor. O verdadeiro amante é aquele que é apaixonado sempre, sem intermitência. Com efeito, o termo "paixão" conota o lado emocional e não o racional, porém, quando o fato se dá com um filósofo, ou com qualquer pessoa de bom senso, é de qualidade perene. O verdadeiro amante vê além da beleza física; vê a beleza da psique que habita dentro do corpo. Quando esse verdadeiro amante é um filósofo, quererá ensinar a filosofia ao seu amado[47]. Como consequência, tanto o amado como o amante se acharão em plena felicidade.

Se o amante for, de fato, profundamente virtuoso, conseguirá conquistar a alma inteira do seu amado, de forma que este é quem passará a contemplar a beleza daquele, mesmo que não seja belo de corpo. Esse exemplo está muito bem concretizado nas páginas finais do Banquete, onde Alcebíades, na condição de amado, termina por fascinar-se pela grandiosa virtude de Sócrates, o amante. Ali, o amado vê, além do corpo, uma tamanha beleza num homem aparentemente feio. A sua paixão é tão grande pelo amante que é preciso armar ciladas para poder conquistá-lo.

Sabei que nem a quem é belo tem ele a mínima consideração, antes despreza tanto quanto ninguém poderia imaginar, nem tampouco a quem é rico, nem a quem tenha qualquer outro título de honra, dos que são enaltecidos pelo grande número; todos esses bens ele julga que nada valem, e que nós nada somos [...]. Julgando porém que ele estava interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da fortuna, como se estivesse ao alcance, depois de aquiescer a Sócrates, ouvir tudo o que ele sabia [...].

Eu, então, depois do que vi e disse, e como flechas deixei escapar [...], vesti esta minha túnica, pois era inverno, estendi-me por sob o manto deste homem, e abraçado com estas duas mãos a este ser verdadeiramente divino e admirável fiquei deitado a noite toda [...]. Ora, não obstante tais esforços meus, tantos mais este homem cresceu e desprezou minha juventude, ludibriou-a, insultou-a e justamente naquilo em que eu pensava ser alguma coisa [...]; pois ficai sabendo, pelos deuses e pelas deusas, quando me levantei com Sócrates, foi após um sono em nada mais extraordinário do que seu eu tivesse dormido com meu pai ou um irmão mais velho[48].


Uma vez alcançada a maturidade dialética, o amor torna-se perfeito e belo e, portanto, é capaz de despertar a psique a contemplar aquele outro Belo. A ascensão rumo ao Belo é comparada com a capacidade de voar. As asas crescem de acordo com a contemplação correta de um belo físico:


Do mesmo modo que o sopro ou um som refletido por um corpo sólido e resistente também às emanações da Beleza, entrando pelos olhos, através dos quais se refletem, atingem a alma. Quando seguindo o caminho natural que leva à alma, aí chega, enche totalmente a alma e as aberturas das asas que, recebendo nova vitalidade, ganha nova plumagem e, por sua vez, a alma do amado fica também cheia de amor[49].


Os poetas e filósofos verdadeiros são não somente os que amam a psique, mas também os que concebem nela, isto é, os que concebem a virtude. è sobre isso que Diotima faz questão de frisar quando discorre sobre a sua dialética erótica. Vejamos como se dá essa ascensão rumo ao Belo Supremo:


Ora, os interessados devem começar se dirigindo aos belos corpos, amar a um só corpo e gerar belos discursos; depois devem entender que as belezas em todos os corpos são, na verdade, uma só e, em seguida, amar todos os corpos e não mais um só e, então, considerar mais precisoa a beleza da alma que a do corpo. Eis, com efeito, em que consiste proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir; em começar do que aqui é belo, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabem naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo [...]. Que pensamos então [...], se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio belo pudesse ele contemplar?[50].


Como se depreende da referida passagem, Platão traça o trajeto para alcançar aquela Beleza através de quatro escalões: "primeiramente, partir-se-á da beleza física; depois da beleza moral; em seguida passar-se-á à beleza intelectual; e finalmente atingir-se-á o Belo absoluto[51]". Diotima, sacerdotisa de Mantinéia (personagem fictícia de Platão), descreve-o não como belo, imortal, ou rico, aliás. Eros sequer é um deus. Por outro lado, ele também não é mortal, nem feio, pois a sua posição é intermediária entre as duas categorias: ele é um gênio (δαιμόνιον), um ser que intermedeia os homens com Deus (Θεός). Ele é o filho de Recurso com Pobreza, de onde é forçoso ser a sua natureza mutatória ou, talvez, por assim dizer, misteriosa, pois, pelo lado materno é um desgraçado e miserável, mas, pelo lado do pai é ávido de sabedoria. Situa-se, pois, exatamente entre a sabedoria e a ignorância.


Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio, pois já o é, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso [...]. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor do belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante[52].


Assim como o amor carnal promove a imortalidade do corpo, o amor dialético conduz a psique para o mundo das formas, as quais são eternas. O amor sexual leva à concepção, à parturição e à criação, o que concorre para a continuação da espécie, aliás, é desse modo que se pode dizer que os homens são imortais. O indivíduo isolado é mortal e desaparece, porém a espécie humana é contínua e imortal, sempre se renovando, sem nunca morrer[53]. A geração está, portanto, associada a Eros, o qual estimula os contrários para a cópula, da qual surge a concepção.

É possível, aqui, associar o discurso de Diotima[54] com o de Aristófanes, que se preocupou em pensar a gênese do desejo. O mito narrado por Aristófanes alude à arrogância dos primitivos humanos e ao castigo de Zeus, ou seja, o surgimento do sexo e do desejo. Foi, sem dúvida, a divisão quem provocou o surgimento do desejo. Uma vez dividido pelo Deus, o homem aspirou pela sua metade, pela unidade que lhe pertencia. Platão, então, procura lembrar que o amor tem sua origem na continuidade da espécie, tal como se dá com os animais[55]. "Provavelmente Platão via no amor a lei universal que anima todo o real, daí a função sintética e intermediária que reconhece nele[56]".

O desejo erótico revela que carecemos do verdadeiro ser e da perfeição. O amor nasce da ambigüidade do sensível, e o lança para o supra-sensível, com quem ele possui certa semelhança. Mas, normalmente, dá-se o contrário e, então, os homens são levados ao despudor. "Nascido para espiritualizar a matéria, o desejo materializa o espírito[57]". Com efeito, todos os homens, sem exceção, aspiram a essa tão maravilhosa condição; entretanto, qual seria a razão de muitos homens não amarem, ou seja, não quererem ser felizes? Platão mesmo dá a resposta: o amor possui, com efeito, vários aspectos, e cada um deles, normalmente, recebe um nome, mas as pessoas se utilizam do nome genérico, ou seja, do nome que cabe a todos os seus diversos aspectos[58].

Em geral, todo o desejo daquilo que é bom, assim como o de ser feliz, constitui-se no supremo amor para todo homem. Entretanto, "enquanto uns, porque se voltam para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que amam nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo".[59]

Num determinado trecho, conforme foi visto, Platão diz que o amante ama o que é belo, mas depois esclarece dizendo que o amor, em primeiro plano, não é o amor do belo, mas da geração e da parturição no belo, com o intuito de ter sempre consigo o belo. O texto, no entanto, é bem claro ao mostrar que o amor ama o belo e a geração simultaneamente: "E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É, de fato, forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor"[60]. É típica da natureza, até entre os brutos, que o mortal procure, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal[61].

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[1] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 745. Cf. REALE, Giovani. A História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, v. 2, p. 308.

[2] Rep. II 357 a-d.

[3] Para Jaeger, o conhecimento do Bem não é uma operação de inteligência, e, sim, a expressão consciente do homem interior. JAEGER, Werner, op. cit., p. 565.

[4] Rep. VI 505c.

[5] Rep. VI 505 b-c.

[6] GONZÁLEZ, Francisco J. Dialectic and Dialogue: Plato's practice of philosophical inquiry. Evanston: Northwestern University, 1998, p. 217.

[7] Ibid., p. 218.

[8] Eis como González formula uma questão para o problema: "Knowledge is not identical with the good, but neither can it have the good as a mere object external to itself. What exactly, then, is the nature of the relation between knowledge and the good in what is called 'knowledge of the good'? Socrates provides a clear answer: the relation is best described by saying that knowledge is 'goodlike' (άγαθοείδή, 509 a)". Ibid., p. 217-218.

[9] Ibid., p. 218.

[10] Ibid., p. 218.

[11] Rep. III 381c.

[12] PIETTRE, Bernard. A República, livro VII. 2. ed. Brasília: UnB, 1996, p. 31.

[13] REALLE, op. cit., p.150.

[14] PAPPAS, Nickolas. Plato and the Republic. London: Routledge, 1995, pp. 137-138.

[15] PIETTRE, op. cit., pp. 30-31.

[16] Rep. VI 504e.

[17] Ibid., VI 505 a-b.

[18] GUTHRIE, W.K.C., A history of Greek Philosophy. Plato the man and his dialogues earlier period. Cambridge: Cambridge University Press, v. IV, 1995, pp. 35, 526.

[19] Rep. VI 507a.

[20] Ibid., VI 409 b-c.

[21] Ibid., 509c.

[22] "Contrary to the general rule, he is saying, from the fact that the Form of Good is the cause of the being of others Forms it doesn't follow that the Form of Good is the Form of Being". WHITE, Nicholas P. A Companion to Plato's Republic. Indianopolis: Hackett, 1984, pp. 180-181.

[23] PAPPAS, op. cit., p. 137.

[24] GONZÁLEZ, op. cit., pp. 213-215.

[25] A música, como uma maneira excelente de se educar, culmina exatamente no seguinte ponto: no amor ao Belo. Rep. III 403c.

[26] GUTHRIE, op. cit., p. 526.

[27] Idem: pp. 510-512.

[28] Convém lembrar que nem todos aceitam esta teoria com muita facilidade. Para Nicholas White, por exemplo, não apenas a República e nem todos os diálogos, não alcançam uma explicação considerável sobre a forma do Bem. WHITE, op. cit., p. 30.

[29] De acordo com Cirne-Lima, a Grande Síntese, que falta nos diálogos escritos, foi transmitida por meio oral. O beco sem saída, a indefinição do jogo dos opostos, a dita άπορία, muito comumente atribuída aos Diálogos, explica-se por esta causa, isto é, pela preferência de Platão em não exarar tudo o que sabia. CIRNE-LIMA, Carlos, Dialética para Principiantes. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, pp. 37-41.

[30] Dois grandes nomes dessa escola e, simultaneamente seus pioneiros são Krämer e Gaiser. REALE, op. cit., p. 11.

[31] Ibid., p. 20.

[32] Cartas VII 341c-e; 343a.

[33] Fedro 274e-275 a-b.

[34] REALE, op. cit., pp. 107-108.

[35] Ibid., p. 140.

[36] Ibid., p. 86-87.

[37] Ibid., p. 84.

[38] Met. A 6 988 a 9-17.

[39] REALE, op. cit., p. 84.

[40] Ibid., p. 84-85, 88.

[41] MANON, Simone. Platão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 146.

[42] A República contém, sem dúvida, uma fala mítica, sobretudo, no livro X o qual aborda o tormento dos injustos no além. "His religious terminology in the Phaedo is Bacchic, Orphic, and Pythagorean all at once (...). The Republic does not use the vocabulary of ecstatic ritual as explicitly as the Phaedo, but the general framework is still present in Plato's mind". MORGAN, Michael L. "Plato and Greek Religion", in KRAUT, Michel (Org.) The Cambridge companion to Plato. Cambridge: Cambridge University, 1997, pp. 238-239.

[43] Fedro 244d; 245b-c.

[44] Ibid. 251 a.

[45] Ibid. 251 d-e.

[46] Rep. III 403 a-b.

[47] Fedro 252 e.

[48] Banq. 216 d-e; 217 a; 219 b-d.

[49] Fedro, 255 c-d.

[50] Banq., 211 c-e.

[51] FREIRE, Antônio. O Pensamento de Platão. Braga: Livraria Braga, 1967, p. 68.

[52] Banq. 204 a-b.

[53] Ibid., 207 c-d.

[54] Na verdade, "todo o discurso de Diotima é uma análise segura da natureza socrática". JAEGER, op. cit., p. 747.

[55] MANON, op. cit., pp. 140-142.

[56] Ibid., pp. 142-143.

[57] Ibid., pp. 144-145.

[58] Banq. 205 a-b.

[59] Ibid., 205d.

[60] Ibid. 207a.

[61] Ibid. 207d.




Lutecildo Fanticelli



"A forma do bem" foi extraído de Fanticelli, Lutecildo, Questões Essenciais da Dialética em Platão, Passo Fundo, Méritos, 2003, pp. 115-139.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não farei um comentário ao trabalho de Lutecildo Fanticelli que é notável mas sim uma observação que me é muito cara. Surgir nesta página um trabalho de um especialista brasileiro constitui, por sua vez, um convite para os interessados em Filosofia Antiga, qualquer que seja o país em que se fale português para enviar para este site as suas contribuições que serão sempre bemvindas.

A. J. Penedos