sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A forma do bem


A forma do Bem descrita na República


Seria muito importante observar aqui sobre a relação entre os termos "Bem" e "Belo", os quais aparecem em algumas passagens dos Diálogos com conotações semelhantes, tais como no Lísis 216d assim como no Banquete. Aliás, neste último, o discurso de Diotima reverencia o Belo na mesma proporção em que Sócrates reverencia o Bem na República. Por esse motivo, ambos são aqui empregados como sinônimos, se bem que atentamos para que cada um deles esteja adequado em seu respectivo contexto. De acordo com Jaeger, o Belo e o Bem constituem "dois aspectos gêmeos de uma única realidade, que a linguagem corrente dos gregos funde numa unidade, ao designar a suprema arete do Homem como 'ser belo e bom' (καλοκαγαθία).[1]

Gláucon, ainda nas primeiras partes da República, já havia antecipado algumas espécies de bem, que, de acordo com o contexto, não se referem, de fato, ao Bem metafísico e, sim, ao bem no seu sentido cotidiano. Uma é aquela espécie que as pessoas desejam, não visando a uma outra consequência, senão àquele próprio Bem; por exemplo, a alegria e o prazer, os quais são buscados para o momento presente e são bons em si; a outra espécie é a que almejamos por si mesmo e também pelas suas consequências, tais como a sensatez, a vista e a saúde; a terceira é aquela espécie que, de fato, é benéfica apenas nas suas consequências, visto que a sua prática requer sacrifícios, por exemplo, a ginástica e a dieta que se usam no tratamento de doenças. Nós não o praticamos por amor a eles mesmos, mas às suas consequências[2].

É, entretanto, em 504d, no livro VI da República, que Sócrates começa o interessante tratado acerca do bem em sentido metafísico[3]. De início, ele e seus interlocutores já percebem a dificuldade do tema e a sua circularidade. Para muitos, o Bem é um prazer, e, para alguns, é o conhecimento, porém esses, quando interrogados sobre o que seja o conhecimento, acabam cometendo uma certa redundância porque dizem que é "o saber do bem[4]", o que é explicitamente ridículo. Por outro lado, os que o definem com o prazer se contradizem, porque concordam que há prazeres bons e maus; logo, isso significa que ele seja bom e mau ao mesmo tempo. E ainda uma outra dificuldade ocorre quando alguém censura outrem por não conhecer o bem e, no entanto, começa a falar como se aqueles que o ignoram já o conhecessem[5].

Ora, se o próprio Bem é a causa de todo o conhecimento, como poderia ele ser objeto do conhecimento? Apenas em dizer "conhecimento do bem" já o transformamos em objeto do conhecimento. De acordo com González, conhecimento do Bem, necessariamente, constitui-se em conhecimento do conhecimento.[6] Aqui há, evidentemente, ainda, uma circularidade, porém não viciosa, uma vez que se trata apenas da questão que envolve conhecer o Bem na condição de que o conhecimento em si seja goodlike.[7] Para González, a dificuldade em torno do Bem aparece na República da mesma forma como aparece nos demais Diálogos, diferindo, apenas, que na República aparece uma certa solução[8]. Conhecendo o Bem, nós também conhecemos o conhecimento, pois o conhecimento, com efeito, é goodlike. Na verdade, ao conhecer o Bem, nós conhecemos algo mais que o conhecimento. Nós conhecemos as formas por meio de idealização, e o Bem é o princípio que faz tal idealização possível[9]. Se quiséssemos dar um nome para este tipo de conhecimento que envolve o fato de conhecer o próprio Bem, não haveria outro nome melhor, diz Gonzáles, do que "conhecimento dialético"[10].

É bom lembrar que o Bem é uma forma, aliás, a mais elevada de todas. O panegírico que lhe é dirigido é, às vezes, tão requintado que, de fato, deixa transparecer uma espécie de divindade e, por pouco, até um monoteísmo. Tal como a forma do Bem, Deus, sendo bom, jamais pode ser a causa de todas as coisas, conforme crê o vulgo, mas é apenas o causador das coisas boas. Aquilo que é bom em momento algum será prejudicial, mas sempre bom; logo, o Bem nunca é a causa do mal.

E de igual modo, Deus, consoante às formas, é imutável, de modo que não se pode tornar pior nem melhor, pois já é perfeito. Essa é, aliás, a razão de Platão censurar as histórias nas quais Deus se metaformoseia[11]. Ele chega a ser mais elevado que a própria justiça, que, aliás, está contida no próprio título do Diálogo em questão. Chega a suplantar também a temperança, a prudência e a fortaleza, em síntese, é mais elevado que as próprias virtudes cardeais. O Bem, de acordo com Pietre, "designa Deus, termo supremo do conhecimento e garante a verdade desse conhecimento. Entretanto ele não designa um deus mitológico, astral, ou um objeto de culto determinado[12]".

Na concepção de Reale, ele é o Deus impessoal no contexto platônico[13]. Nickolas Pappas, entretanto, assegura que, para Platão, a forma do Bem não se trata de Deus e, sim, de uma Forma de "Formidade", isto é, uma Forma de formas. No vocabulário do livro V, uma forma é aquilo que é, porém a forma do Bem é aquela que está acima do Ser, o que quer dizer que ultrapassa todas as outras formas[14].

Enfim, a forma do Bem é o objeto último do conhecimento filosófico. Sem a visão dele no ápice da procura da verdade, a filosofia não poderia alcançar uma visão em conjunto. Qualquer ser vivente, por menor que seja, sempre procura o bem próprio. Neste caso, ele visa se reproduzir e perpetuar a vida. "Cada um de nós deseja o Bem, mas se limita a um bem estreito (o bem da saúde, das honras, o bem material). O bem da alma só pode elevar-se à contemplação do Bem. E tal objetivo constitui, para o filósofo, o fim último da ciência, isto é, a dialética"[15].

Quando Sócrates discursa, seus interlocutores estão assaz curiosos e ávidos por ouvi-lo sobre tão intrigante assunto. Sócrates hesita em prosseguir, mesmo sob a insistência de seu amigo Gláucon, exatamente a quem ele declara ser incapaz de acompanhá-lo, em decorrência da complexidade do tema. Adimanto não esconde a sua curiosidade: "Mas quanto a esse estudo mais elevado e ao objeto que lhe atribuis, julgas que alguém te largará sem te perguntar qual é[16]?"

Poderíamos possuir tudo, ou quase tudo, porém, se nos faltasse apenas o Bem, vantagem nenhuma teríamos, ou seja, nada ganharíamos se possuíssemos multidões de coisas, não sendo elas boas. De igual modo, poderíamos conhecer tudo quanto há, mas, se não conhecêssemos a forma do Bem, proveito nenhum teríamos[17]. Na sua descrição sobre o Bem, Sócrates deixa transparecer um discurso e um estilo, mais ou menos, esotérico. Na verdade, o calar socrático em relação à forma do Bem subentende-se uma espécie de esoterismo. Neste caso, estamos falando do silêncio dos filósofos pitagóricos, de quem Platão, com efeito, herdou o seu esoterismo[18].

Nas partes finais do livro VI e no início do VII, Sócrates esquiva-se da definição desse ser tão enigmático, ou seja, protela e, depois, então, resolve expor não sobre o Bem, mas sobre o Filho do Bem, o Sol. Eis que o Sol é o senhor da vida e do bem no mundo sensível, o causador das estações e dos anos etc. Caso alguém capacitado e entendido no assunto quisesse nos falar diretamente sobre este Bem, provavelmente ficaríamos com os olhos completamente ofuscados, ou talvez cegos, o que quer dizer que nada compreenderíamos. A essa explicação sobre o Filho do Bem Sócrates chama de juros, enquanto que o capital, o próprio Bem, fica assim adiado: "Receberei portanto este juro e este filho do Bem em si".[19]

Aprofundando a questão ainda mais, Sócrates admite, paradoxalmente, que o Bem é mesmo mais elevado que o próprio Ser[20]. Tudo isso é uma "transcendência tão divinal"[21], diz Gláucon, e insaciável que era por sabedoria, pede ao mestre para retornar ao assunto do Sol, mas é nesse momento que Sócrates inicia uma outra alegoria, a da Linha, e logo na sequência, a da caverna. Provavelmente, o maior paradoxo que daí decorre é a afirmação de que o Bem seja superior ao próprio Ser ou de que ambos não sejam o mesmo. Essa declaração é, sem dúvida, uma questão bastante difícil. Aqui, ao que parece, Platão realmente nega que a forma do Bem seja o Ser, do mesmo modo que nega que o próprio Sol seja a geração. Estamos tratando, sem dúvida, de uma exceção na opinião geral de Platão quanto à causação[22]. Tal declaração também pode significar o início de uma mística teológica. Seria exatamente esta passagem que mais tarde Plotino usaria para elevar o Bem ao princípio divino[23].

Considerando, ainda, o carácter ontológico da forma do Bem, seria importante citar aqui a análise de Francisco González em torno da leitura de três outros autores: Wieland, Ferber e Ebert. As três podem ser complementadas, bastando apenas acoplá-las, ou seja, recorrer a uma quando a outra não bastar. A leitura principal de Wieland é a de que o Bem não é um objeto de conhecimento teorético, mas de um conhecimento que governa o uso do conhecimento de qualquer objeto, ou seja, trata-se de um conhecimento prático. Para González, entretanto, o Bem em Platão não é meramente um princípio prático; é, antes, uma realidade objetiva. Essa insuficiência é contornada por González com a leitura de Ferber e Ebert, para quem as formas são ideais, isto é, não apenas são as coisas que são, mas as coisas que deveriam ser. As formas, a princípio, são normas e não apenas as ideias em sentido tradicional; são deonta e não apenas onta. As formas são, portanto, diferentes normas, porém o Bem é a forma que possibilita a existência e a intelegibilidade de uma norma. A concepção de Ebert, diz González, é de que a forma do Bem tem, antes, a função de excluir e não de determinar. A forma do Bem exclui as imperfeições e é responsável pela revelação dos conceitos que então funcionam como norma[24].

No Diálogo Hípias Maior, Platão também trata do Belo. Ali, o interlocutor de Sócrates, cujo nome leva o título do Diálogo, é indagado sobre o que seja o Belo[25]. Suas respostas, quase todas, consistem de exemplos por meio dos quais a opinião comum também compreende por viver eticamente bem e feliz. Sócrates, estulto como sempre, refuta todas as respostas do célebre sofista e procura deixar claro que o que lhe interessa é uma resposta, mais ou menos objetiva, que não se utilize de exemplos e na qual não haja nenhum indício de contradição. Quase todas as respostas de Hípias foram, com efeito, inteligentes, mas não conseguiram convencer um Sócrates assaz metafísico para o seu tempo. Hípias, naturalmente, irrita-se e acusa Sócrates de se ocupar com uma reflexão sem utilidade prática. Sócrates, por sua vez, não dá uma definição sobre o Belo, mas fica boquiaberto por perceber que uma pessoa tão sábia como Hípias e que vive ensinando por toda Hélade sobre coisas grandiosas não saiba dizer o que seja o belo, uma questão tão primordial.

Até aqui podemos perceber que, de certo modo, nenhuma resposta clara tivemos e que Platão, com muita habilidade, escapa e não define uma das suas grandes doutrinas[26] e, consequentemente, termina um bocado insuficiente. Se, na República, a aporia não aparece, a insuficiência ou, talvez, uma não determinada explicitação parece substituí-la. Guthrie, aliás, observa que a tão sublime ascensão da caverna, a qual culmina na contemplação da forma do Bem, na verdade, não foi percorrida nem mesmo por Sócrates. O que Platão faz em determinadas passagens da República é tentar explicar em termos filosóficos aquilo que na sua formação é, de fato, pitagórico. As caracterísitcas tão requintadas e absolutas atribuídas à forma do Bem, assim como a sua função soberana, têm, na verdade, um peso muito mais religioso do que racional[27]. Nesta altura, seria importante fazer referência a uma das soluções que os estudiosos do platonismo apresentam nos dias atuais, a qual se encontra nas chamadas "doutrinas não escritas".




A forma do Bem de acordo com as Doutrinas não Escritas[28]


Nesta seção, limitar-nos-emos apenas à questão da forma do Bem. Quanto aos detalhes da origem dessa escola e aos argumentos diversos que lhe dão suporte, não nos convém aqui desenvolvê-los. De acordo com a escola de Tübingen, o mistério que envolve a questão do Bem pode ser explicado e resolvido pelo conhecida doutrina esotérica[29] de Platão, também chamada de "doutrinas não escritas" (άγραφα δόγμαθα). Essa escola foi, de facto, quem resgatou e trabalhou essa teoria e, segundo os seus estudiosos, havia para Platão determinadas doutrinas que não convinham à escrita, mas unicamente à oralidade. Essa doutrina visava aos ouvintes da Academia que já se encontravam numa certa altura da iniciação filosófica. A escola de Tübingen[30] possui argumentos diversos na comprovação dessa interpretação. Ela fez, por assim dizer, exotérico ao que era esotérico. O próprio Aristóteles, no livro da Física, "diz-nos que esses ensinamentos que Platão comunicava só por meio da 'oralidade' eram chamados 'doutrinas não-escritas' (άγραφα δόγμαθα)"[31].

Duas passagens do Fedro e da Carta VII são tidas como fortes bases para argumentar que Platão não escreveu sobre determinadas coisas, visto serem por demais delicadas. De modo sucinto, eis os trechos desses Diálogos que soam como prova de que há um Platão esotérico:


De mim pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre semelhante matéria. Não é possível encontrar a expressão adequada para problemas dessa natureza, como acontece com outros conhecimentos [...]. Se me parece necessário deixá-las ao alcance do povo, que poderia haver de mais belo na vida do que divulgar doutrinas tão salutares, e esclarecer os homens sobre a natureza das coisas? Porém não acredito que de tais explicações advenha proveito para ninguém, com exceção de alguns poucos, que com indicações sumárias, sejam capazes de descobrir sozinhos a verdade [...]. Por isso mesmo, nenhuma pessoa de censo confiará seus pensamentos a tal veículo, principalmente se este for, como é o caso dos caracteres escritos[32].

Tu, nesse momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não investate um remédio para a memória, mas para a memoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação[33].


A intrigante questão da forma do Bem teria agora a sua essência revelada: o Uno. Na verdade, o próprio Ser deriva do Uno, o qual é a medida de todas as coisas[34]. Aliás, é muito interessante, e também curioso, que o Uno, para essa escola, seja o causador do Bem, do Ser e também da Díade, a qual seria a representante do mal. Se bem que as doutrinas não escritas "não nos diz expressamente que a Díade fosse considerada tal em todos os níveis. Com efeito, seria difícil explicar como, nos níveis inteligíveis, onde a Díade age como princípio de diferença de gradação e multiplicidade, ela possa ser causa do mal em sentido verdadeiro e próprio e, sobretudo, de que tipo de mal [...]. No nível do inteligível, a Díade é a causa do negativo somente em sentido paradigmático e abstrato[35]".

Nesse sentido metafísico, o Uno e a Díade, evidentemente, não significam, respectivamente, o número um e o número dois; eles são, por assim dizer, metamatemáticos. A Díade, antes de qualquer coisa, "é o princípio e raiz da multiplicidade dos seres [...] é uma espécie de 'matéria inteligível', ao mesmo nos níveis mais altos [...]. Além de Princípio de pluralidade horizontal, é também Princípio de gradação hierárquica do real[36]". O Uno, a despeito de sua superioridade sobre a Díade, ainda precisa dela para a sua atuação. Atuando sobre a Díade, ele delimita aquilo que é ilimitado.

Reale lembra que o próprio Aristóteles já havia percebido que as formas não se enquadram como explicação última[37]. No primeiro livro da Metafísica, no capítulo VI, ele aborda o pensamento do mestre. Discute o problema dos Primeiros Princípios, dos quais derivam as formas, e esboça a estrutura das realidades supra-sensíveis do contexto platônico:


Sendo as idéias as causas dos outros seres, julgou por isso que os seus elementos fossem os elementos de todos os seres; e como matéria, são princípios o grande e o pequeno, como forma é o uno, visto ser a partir deles, e pela sua participação no uno, que as idéias são números. Ora, que o uno seja substância, e não outra coisa, da qual se diz que é una, Platão afirma-o de acordo com os pitagóricos e, do mesmo modo, que os números sejam as causas da substância dos outros seres. Mas admitir em lugar do infinito concebido como uno, uma díada, e constituir o infinito com o grande e o pequeno, eis uma concepção que lhe é próprio, como ainda pôr os números fora dos sensíveis [...]. Se Platão separou assim o uno e os números do mundo sensível, contrariamente aos pitagóricos, e introduziu as idéias, foi por consideração das noções lógicas [...], por outro lado, se ele fez da díada uma segunda natureza, é porque os números, à exceção dos ímpares, dela facilmente derivam como matéria plástica [...]. Tal é, pois, a conclusão de Platão sobre as questões que indagamos. É evidentemente, pelo que precede, que ele somente se serviu de duas causas: da do 'que é' e da que é segundo a matéria, sendo as idéias a causa do que é para os sensíveis, e o uno para as idéias[38].


Considerando a pluralidade das formas, surge, com efeito, a necessidade da unificação e delimitação na esfera do inteligível[39]. Parece, de fato, não se tratar de tarefa simples a solução deste problema, visto ocorrer a existência de formas não somente para as substâncias, mas sim para todas as qualidades, como, por exemplo, o Belo e o Grande. Assim como a multiplicidade das coisas sensíveis se explica pelas formas existentes para cada uma, a pluralidade das formas também requer uma unificação. Desse modo, surge a necessidade de uma outra metafísica, mais profunda, mais distante ainda do sensível, a qual é constituída pelo Uno e pela Díade indefinida, que são os Primeiros Princípios. Desses, então, procedem as próprias formas. Da polaridade entre os Primeiros Princípios derivam os entes, que são uma espécie de síntese "que se manifesta como unidade-na-multiplicidade[40]".




A forma do Bem via o eros dialético


Se, na República, encontramos a dialética um tanto isenta da questão do mito, no Fedro, no Banquete e também no Fédon, vemo-la, entretanto, inteiramente revestida de uma habitual linguagem mítica. A dialética, enquanto Eros, é analisada no plano do sentimento, mas, na República, é vista na ótica do conhecimento[41]. Aliás, até mesmo na República a linguagem mítica não está ausente, se bem que esteja em proporção menor[42].

Veremos, agora, a concepção da forma do Bem e, consequentemente, a dialética no Fedro e no Banquete. Nesses dois Diálogos, os seus personagens estão preocupados com a questão do Amor e cuidam-se para não cometer sacrilégio contra uma divindade tão magnífica, louvando-a da melhor forma que podem.

No Fedro, Sócrates ouve o discurso de Lísias, narrado por Fedro e, logo depois, refuta-o. Este, um pouco irritado, obriga-o a fazer um outro discurso melhor do que aquele. Sócrates obedece-lhe e compõe, então, um outro discurso quase no mesmo estilo, isto é, sustentando que se devem fazer favores aos não-apaixonados em detrimento dos apaixonados, uma vez que estes estão sempre destituídos de razão. Porém, logo em seguida, encontramos Sócrates totalmente preocupado e arrependido pelo discurso que acabara de fazer. Disposto a se purificar a qualquer custo, prontifica-se a fazer um outro discurso, sério e comprometido com a verdade. Agora, no entanto, parte por uma outra perspectiva, inversa da dos dois discursos, isto é, do dele e do de Lísias; ele entra para o campo dos iniciados e pretende falar com a ajuda de Deus, ou seja, inspirado, pois, há pouco, Deus havia sido impedido de falar e ofendido por dois simples mortais. "Graças ao delírio, surgiram os ritos catárticos e iniciáticos [...]. Os deuses desejam a suprema ventura daqueles a quem foi concedida a graça da loucura[43]".

A linguagem platônica surpreende, pois não só acolhe na filosofia o mito em escala homérica, mas também em escala órfica, onde nem mesmo o delírio é detido. Eis uma interessante passagem do Fedro, que pode muito bem representar o aspecto místico de Platão:


[...] o que foi recentemente iniciado e que outrora teve o dom de contemplar muita coisa, esse, quando vislumbra um rosto divino ou qualquer outro objeto que traga a recordação da Beleza, ou um corpo formoso, esse experimenta primeiramente uma espécie de tremor, e depois, uma certa emoção, semelhante à de outrora. Nessa altura volta o olhar para o objeto belo que assim o despertou, e venera-o, como se de um Deus tratasse[44].


A beleza física tem a capacidade, quando for o caso, de despertar a dialética no amante virtuoso. O Amor é, obviamente, quem desperta uma paixão profunda no amante, o qual, dia e noite, com determinação, não se desvia do seu intento, a Beleza [45].

Embora o Amor seja o maior dos prazeres e o mais penetrante, ele atua com moderação e harmonia[46]. A temperança, que sempre deve ser um atributo do verdadeiro filósofo, também faz sua presença na questão do próprio amor. O verdadeiro amante é aquele que é apaixonado sempre, sem intermitência. Com efeito, o termo "paixão" conota o lado emocional e não o racional, porém, quando o fato se dá com um filósofo, ou com qualquer pessoa de bom senso, é de qualidade perene. O verdadeiro amante vê além da beleza física; vê a beleza da psique que habita dentro do corpo. Quando esse verdadeiro amante é um filósofo, quererá ensinar a filosofia ao seu amado[47]. Como consequência, tanto o amado como o amante se acharão em plena felicidade.

Se o amante for, de fato, profundamente virtuoso, conseguirá conquistar a alma inteira do seu amado, de forma que este é quem passará a contemplar a beleza daquele, mesmo que não seja belo de corpo. Esse exemplo está muito bem concretizado nas páginas finais do Banquete, onde Alcebíades, na condição de amado, termina por fascinar-se pela grandiosa virtude de Sócrates, o amante. Ali, o amado vê, além do corpo, uma tamanha beleza num homem aparentemente feio. A sua paixão é tão grande pelo amante que é preciso armar ciladas para poder conquistá-lo.

Sabei que nem a quem é belo tem ele a mínima consideração, antes despreza tanto quanto ninguém poderia imaginar, nem tampouco a quem é rico, nem a quem tenha qualquer outro título de honra, dos que são enaltecidos pelo grande número; todos esses bens ele julga que nada valem, e que nós nada somos [...]. Julgando porém que ele estava interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da fortuna, como se estivesse ao alcance, depois de aquiescer a Sócrates, ouvir tudo o que ele sabia [...].

Eu, então, depois do que vi e disse, e como flechas deixei escapar [...], vesti esta minha túnica, pois era inverno, estendi-me por sob o manto deste homem, e abraçado com estas duas mãos a este ser verdadeiramente divino e admirável fiquei deitado a noite toda [...]. Ora, não obstante tais esforços meus, tantos mais este homem cresceu e desprezou minha juventude, ludibriou-a, insultou-a e justamente naquilo em que eu pensava ser alguma coisa [...]; pois ficai sabendo, pelos deuses e pelas deusas, quando me levantei com Sócrates, foi após um sono em nada mais extraordinário do que seu eu tivesse dormido com meu pai ou um irmão mais velho[48].


Uma vez alcançada a maturidade dialética, o amor torna-se perfeito e belo e, portanto, é capaz de despertar a psique a contemplar aquele outro Belo. A ascensão rumo ao Belo é comparada com a capacidade de voar. As asas crescem de acordo com a contemplação correta de um belo físico:


Do mesmo modo que o sopro ou um som refletido por um corpo sólido e resistente também às emanações da Beleza, entrando pelos olhos, através dos quais se refletem, atingem a alma. Quando seguindo o caminho natural que leva à alma, aí chega, enche totalmente a alma e as aberturas das asas que, recebendo nova vitalidade, ganha nova plumagem e, por sua vez, a alma do amado fica também cheia de amor[49].


Os poetas e filósofos verdadeiros são não somente os que amam a psique, mas também os que concebem nela, isto é, os que concebem a virtude. è sobre isso que Diotima faz questão de frisar quando discorre sobre a sua dialética erótica. Vejamos como se dá essa ascensão rumo ao Belo Supremo:


Ora, os interessados devem começar se dirigindo aos belos corpos, amar a um só corpo e gerar belos discursos; depois devem entender que as belezas em todos os corpos são, na verdade, uma só e, em seguida, amar todos os corpos e não mais um só e, então, considerar mais precisoa a beleza da alma que a do corpo. Eis, com efeito, em que consiste proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir; em começar do que aqui é belo, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabem naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo [...]. Que pensamos então [...], se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio belo pudesse ele contemplar?[50].


Como se depreende da referida passagem, Platão traça o trajeto para alcançar aquela Beleza através de quatro escalões: "primeiramente, partir-se-á da beleza física; depois da beleza moral; em seguida passar-se-á à beleza intelectual; e finalmente atingir-se-á o Belo absoluto[51]". Diotima, sacerdotisa de Mantinéia (personagem fictícia de Platão), descreve-o não como belo, imortal, ou rico, aliás. Eros sequer é um deus. Por outro lado, ele também não é mortal, nem feio, pois a sua posição é intermediária entre as duas categorias: ele é um gênio (δαιμόνιον), um ser que intermedeia os homens com Deus (Θεός). Ele é o filho de Recurso com Pobreza, de onde é forçoso ser a sua natureza mutatória ou, talvez, por assim dizer, misteriosa, pois, pelo lado materno é um desgraçado e miserável, mas, pelo lado do pai é ávido de sabedoria. Situa-se, pois, exatamente entre a sabedoria e a ignorância.


Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio, pois já o é, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso [...]. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor do belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante[52].


Assim como o amor carnal promove a imortalidade do corpo, o amor dialético conduz a psique para o mundo das formas, as quais são eternas. O amor sexual leva à concepção, à parturição e à criação, o que concorre para a continuação da espécie, aliás, é desse modo que se pode dizer que os homens são imortais. O indivíduo isolado é mortal e desaparece, porém a espécie humana é contínua e imortal, sempre se renovando, sem nunca morrer[53]. A geração está, portanto, associada a Eros, o qual estimula os contrários para a cópula, da qual surge a concepção.

É possível, aqui, associar o discurso de Diotima[54] com o de Aristófanes, que se preocupou em pensar a gênese do desejo. O mito narrado por Aristófanes alude à arrogância dos primitivos humanos e ao castigo de Zeus, ou seja, o surgimento do sexo e do desejo. Foi, sem dúvida, a divisão quem provocou o surgimento do desejo. Uma vez dividido pelo Deus, o homem aspirou pela sua metade, pela unidade que lhe pertencia. Platão, então, procura lembrar que o amor tem sua origem na continuidade da espécie, tal como se dá com os animais[55]. "Provavelmente Platão via no amor a lei universal que anima todo o real, daí a função sintética e intermediária que reconhece nele[56]".

O desejo erótico revela que carecemos do verdadeiro ser e da perfeição. O amor nasce da ambigüidade do sensível, e o lança para o supra-sensível, com quem ele possui certa semelhança. Mas, normalmente, dá-se o contrário e, então, os homens são levados ao despudor. "Nascido para espiritualizar a matéria, o desejo materializa o espírito[57]". Com efeito, todos os homens, sem exceção, aspiram a essa tão maravilhosa condição; entretanto, qual seria a razão de muitos homens não amarem, ou seja, não quererem ser felizes? Platão mesmo dá a resposta: o amor possui, com efeito, vários aspectos, e cada um deles, normalmente, recebe um nome, mas as pessoas se utilizam do nome genérico, ou seja, do nome que cabe a todos os seus diversos aspectos[58].

Em geral, todo o desejo daquilo que é bom, assim como o de ser feliz, constitui-se no supremo amor para todo homem. Entretanto, "enquanto uns, porque se voltam para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que amam nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo".[59]

Num determinado trecho, conforme foi visto, Platão diz que o amante ama o que é belo, mas depois esclarece dizendo que o amor, em primeiro plano, não é o amor do belo, mas da geração e da parturição no belo, com o intuito de ter sempre consigo o belo. O texto, no entanto, é bem claro ao mostrar que o amor ama o belo e a geração simultaneamente: "E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É, de fato, forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor"[60]. É típica da natureza, até entre os brutos, que o mortal procure, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal[61].

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[1] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 745. Cf. REALE, Giovani. A História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, v. 2, p. 308.

[2] Rep. II 357 a-d.

[3] Para Jaeger, o conhecimento do Bem não é uma operação de inteligência, e, sim, a expressão consciente do homem interior. JAEGER, Werner, op. cit., p. 565.

[4] Rep. VI 505c.

[5] Rep. VI 505 b-c.

[6] GONZÁLEZ, Francisco J. Dialectic and Dialogue: Plato's practice of philosophical inquiry. Evanston: Northwestern University, 1998, p. 217.

[7] Ibid., p. 218.

[8] Eis como González formula uma questão para o problema: "Knowledge is not identical with the good, but neither can it have the good as a mere object external to itself. What exactly, then, is the nature of the relation between knowledge and the good in what is called 'knowledge of the good'? Socrates provides a clear answer: the relation is best described by saying that knowledge is 'goodlike' (άγαθοείδή, 509 a)". Ibid., p. 217-218.

[9] Ibid., p. 218.

[10] Ibid., p. 218.

[11] Rep. III 381c.

[12] PIETTRE, Bernard. A República, livro VII. 2. ed. Brasília: UnB, 1996, p. 31.

[13] REALLE, op. cit., p.150.

[14] PAPPAS, Nickolas. Plato and the Republic. London: Routledge, 1995, pp. 137-138.

[15] PIETTRE, op. cit., pp. 30-31.

[16] Rep. VI 504e.

[17] Ibid., VI 505 a-b.

[18] GUTHRIE, W.K.C., A history of Greek Philosophy. Plato the man and his dialogues earlier period. Cambridge: Cambridge University Press, v. IV, 1995, pp. 35, 526.

[19] Rep. VI 507a.

[20] Ibid., VI 409 b-c.

[21] Ibid., 509c.

[22] "Contrary to the general rule, he is saying, from the fact that the Form of Good is the cause of the being of others Forms it doesn't follow that the Form of Good is the Form of Being". WHITE, Nicholas P. A Companion to Plato's Republic. Indianopolis: Hackett, 1984, pp. 180-181.

[23] PAPPAS, op. cit., p. 137.

[24] GONZÁLEZ, op. cit., pp. 213-215.

[25] A música, como uma maneira excelente de se educar, culmina exatamente no seguinte ponto: no amor ao Belo. Rep. III 403c.

[26] GUTHRIE, op. cit., p. 526.

[27] Idem: pp. 510-512.

[28] Convém lembrar que nem todos aceitam esta teoria com muita facilidade. Para Nicholas White, por exemplo, não apenas a República e nem todos os diálogos, não alcançam uma explicação considerável sobre a forma do Bem. WHITE, op. cit., p. 30.

[29] De acordo com Cirne-Lima, a Grande Síntese, que falta nos diálogos escritos, foi transmitida por meio oral. O beco sem saída, a indefinição do jogo dos opostos, a dita άπορία, muito comumente atribuída aos Diálogos, explica-se por esta causa, isto é, pela preferência de Platão em não exarar tudo o que sabia. CIRNE-LIMA, Carlos, Dialética para Principiantes. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, pp. 37-41.

[30] Dois grandes nomes dessa escola e, simultaneamente seus pioneiros são Krämer e Gaiser. REALE, op. cit., p. 11.

[31] Ibid., p. 20.

[32] Cartas VII 341c-e; 343a.

[33] Fedro 274e-275 a-b.

[34] REALE, op. cit., pp. 107-108.

[35] Ibid., p. 140.

[36] Ibid., p. 86-87.

[37] Ibid., p. 84.

[38] Met. A 6 988 a 9-17.

[39] REALE, op. cit., p. 84.

[40] Ibid., p. 84-85, 88.

[41] MANON, Simone. Platão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 146.

[42] A República contém, sem dúvida, uma fala mítica, sobretudo, no livro X o qual aborda o tormento dos injustos no além. "His religious terminology in the Phaedo is Bacchic, Orphic, and Pythagorean all at once (...). The Republic does not use the vocabulary of ecstatic ritual as explicitly as the Phaedo, but the general framework is still present in Plato's mind". MORGAN, Michael L. "Plato and Greek Religion", in KRAUT, Michel (Org.) The Cambridge companion to Plato. Cambridge: Cambridge University, 1997, pp. 238-239.

[43] Fedro 244d; 245b-c.

[44] Ibid. 251 a.

[45] Ibid. 251 d-e.

[46] Rep. III 403 a-b.

[47] Fedro 252 e.

[48] Banq. 216 d-e; 217 a; 219 b-d.

[49] Fedro, 255 c-d.

[50] Banq., 211 c-e.

[51] FREIRE, Antônio. O Pensamento de Platão. Braga: Livraria Braga, 1967, p. 68.

[52] Banq. 204 a-b.

[53] Ibid., 207 c-d.

[54] Na verdade, "todo o discurso de Diotima é uma análise segura da natureza socrática". JAEGER, op. cit., p. 747.

[55] MANON, op. cit., pp. 140-142.

[56] Ibid., pp. 142-143.

[57] Ibid., pp. 144-145.

[58] Banq. 205 a-b.

[59] Ibid., 205d.

[60] Ibid. 207a.

[61] Ibid. 207d.




Lutecildo Fanticelli



"A forma do bem" foi extraído de Fanticelli, Lutecildo, Questões Essenciais da Dialética em Platão, Passo Fundo, Méritos, 2003, pp. 115-139.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Uma personalidade a retomar



Pedro Baptista



De Newton de Macedo não há quem não detenha uma lembrança vaga, difusa na nostalgia da pletórica juventude... É a memória da edição da Sá da Costa do “Discurso do Método” de que foi tradutor, prefaciador e anotador! Tal como do “Tratado das Paixões da Alma” que segue inserto no mesmo volume dos famosos “Clássicos” da editora lisboeta. A 1ª edição foi em 1938 mas seguiram-se outras, durante todo o século passado, tantas quantas as gerações de estudantes de filosofia que serviu. Também no campo da História de Portugal, os leitores da edição monumental da Portucalense Editora dirigida por Damião Peres, vulgo “de Barcelos”, lembram-se bem do autor dos capítulos originais sobre o domínio germânico ou sobre as instituições de cultura no Século XIII. Tal como muitas personalidades da psicologia ou da psiquiatria se lembram de conhecerem a “Gestalt” através da tese do professor lisboeta sediado no Porto que foi estudar a “psicologia da forma” no terreno de origem para a difundir entre nós num ensaio considerado inovador. Certo é que a obra do Professor Newton de Macedo, sendo de grande vastidão e profundidade, merece um lugar mais destacado do que o de quase anonimato a que tem sido relegado.



O professor da FLUP

Francisco Romano Newton de Macedo nasce em Lisboa a 6 de Novembro de 1894 onde se forma em Filosofia, encetando a carreira de professor nos liceus. Nessa condição, como professor, em Lisboa, no Liceu Central de Gil Vicente, a partir de 1916, convive com Leonardo Coimbra, marcando de forma tão indelével o filósofo, que este, quando acometido pela primeira vez das funções de ministro, no Governo de Domingos Pereira, em 1919, convida-o para ser um dos reformadores dos estudos filosóficos na Universidade de Coimbra.

O mesmo convite, é endereçado para o Rio de Janeiro a Lúcio Pinheiro dos Santos, que também leccionara, na mesma altura, Física e Matemática no Gil Vicente, que haveria de vir a ter, pela pena de Gaston Bachelard, notoridade mundial [1]. Newton e Lúcio, com Leonardo, integrarão, desde logo, em 1919, o quadro da Faculdade, constituindo o corpo docente do 6º Grupo, o de Ciências Filosóficas, da FLUP, desde a criação do Grupo, em 1925, até ao fim do funcionamento da Faculdade, em 1931.

No entanto, tudo indica que o preenchimento do lugar por parte de Lúcio Pinheiro dos Santos foi mais formal que real, na medida em que, agastado com a solução encontrada após a reacção coimbrã à reforma leonardina (questão universitária) [2], procurou exercer outros cargos, desde as funções parlamentares até, uma vez reeleito, uma Comissão de Serviço na Índia, sendo desconhecido até que ponto tal estadia influenciou os seus estudos de ritmanálise [3].

Donde, na verdade, o ensino filosófico, esteve, na primeira fase da FLUP, exclusivamente a cargo de Leonardo Coimbra e de Newton de Macedo, não devendo ser considerado desprimorante, pelo contrário, a afirmação de que este funcionaria como um braço direito do primeiro. Sant’ Anna Dionísio que conheceu Newton de perto, além de o referir como “amigo tranquilo e íntegro de Leonardo Coimbra” refere-o também como “adjunto do mestre eloquente” [4]. No entanto, mal-grado a proximidade afectiva, os campos tratados por um e outro se, quanto a um saber global, se complementam, são especificamente distintos. Tal como o pensamento newtoniano é autónomo do leonardino: navegando muitas vezes em terrenos comuns é, além de por vezes divergente, estruturalmente díspar. Tal as personalidades: em Leonardo, a eloquência sem eximir a exuberância enfática de tribuno e filósofo, em Newton, a discrição e a monocordia do solilóquio reflexivo.



Braço direito de Leonardo

Newton de Macedo aparece como secretário do conselho escolar da FLUP, logo em Outubro de 1919, substituindo numerosas vezes Leonardo e, como Bibliotecário eleito praticamente desde a fundação até à extinção, trabalhando coordenadamente com o Mestre em missões de estudo ao estrangeiro no campo da psicologia experimental.

Lecciona desde História da Civilização, a História da Filosofia Moderna e Contemporânea, passando pela Antiga e Medieval, mas a mor parte dos anos são dedicados à Filosofia Antiga, ficando geralmente para Leonardo a Lógica, a Moral e a Psicologia [5].

Em 1925, ano em que lhe é concedido o grau de doutor em Ciências Filosóficas pela FLUP, é também lavrado um voto de louvor pela “forma como tem tratado em Lisboa os problemas da Faculdade” depreendendo-se que, também enquanto embaixador político ou administrativo da FLUP na capital, exerceu funções de substituição de Leonardo, possivelmente ressabiado com a centralidade política lisboeta, desde a sua exoneração em 1923 ou numa situação de marginalidade política que lhe desaconselhasse a representação académica junto ao poder central.

Em Setembro de 1926, com Leonardo já demitido da presidência da Faculdade, no seguimento do 28 de Maio, Newton é eleito pela Faculdade para o Conselho Superior de Instrução Pública, ocupando o lugar deixado vago pelo antigo ministro, continuando a centrar a actividade lectiva sobretudo na Filosofia Antiga e na instalação de um laboratório de Psicologia Experimental, duas das vertentes temáticas da sua vida professoral, do seu pensamento e da sua obra já que, as outras duas, serão as abordagens da moral e da política, e da história universal e de Portugal.



A luta pela liberdade

Não surpreende pois que um dos quatro pilares fundamentais da obra de Newton de Macedo seja o da Filosofia Antiga, sendo mesmo o terreno de uma das obras mais conseguidas: “A Luta pela Liberdade no Pensamento Europeu”, com o sub-título de a “Alvorada Helénica”, e a menção de que se tratava do I tomo.
No entanto, haveria de ser único.

A obra é editada em 1930, em Coimbra, pela Imprensa da Universidade, sob os auspícios do Professor Joaquim de Carvalho que em breve viria a ser demitido [6].

Em Outubro desse mesmo ano, aliás, já não consta a presença de Newton de Macedo na FLUP, no seu último ano lectivo, sendo a sua cadeira entregue a Leonardo Coimbra, estando provavelmente no regime de bolseiro da Junta de Educação Nacional. É pelo menos nessa situação que se encontra três anos depois, ao dar ao prelo a sua última obra publicada em vida, após o que parece ter sido condenado ao ostracismo, agravado pelo facto de que, como refere Sant’ Anna Dionísio “importará ter presente, sempre, que esse professor friamente demitido e excluído do ensino superior, como o Autor de Criacionismo, manter-se-á, com exemplar estoicismo, ao lado de Leonardo Coimbra. e dos colegas fiéis, afastando-se com impressionante dignidade dos que se submeteram a novo concurso, em Coimbra e em Lisboa, para readquirirem as insígnias doutorais e correlativos apêndices” [7].

A ruptura operada por um hiato de tempo demasiado prolongado, entre o primeiro quartel do nosso Século XX e o último, será suficiente explicação para o desconhecimento actual do trabalho do Professor Newton de Macedo [8]. Também uma razão de sobejo para se encetar a recuperação necessária, sendo que, na nossa opinião modestíssima de não especialista, se nos é permite o alvitre, sublinharíamos a importância de uma reedição de “A luta pela Liberdade no Pensamento Europeu - A Alvorada Helénica”. A obra é o corolário de todo o trabalho lectivo efectuado na Filosofia Antiga de cuja alta qualidade se suspeita ao ler-se as impressões deixadas mna memória de um aluno 50 anos depois: “não esquecemos a série de solilóquios que ele ofereceu ao pequeno curso de seis ou sete ouvintes de que fazíamos parte, acerca do que teria sido o hilozoísmo milesiano, o pitagorismo itálico, o livre pensamento de Xenófon de Cathóphon, a simbologia inerente do obscuro orfismo... N. de M. expunha e interpretava, interrogava-se e respondia, com os olhos sempre postos no além de qualquer caixilho da janela que se lhe oferecesse. Ensimesmado, falava da claridade do céu helénico, ou das obscuridades dos cultos de Zagreus, dos físicos da Jónia ou dos trágicos gregos[9].

Detenhamo-nos então sobre alguns dos conceitos globais da obra. O primeiro capítulo funciona como uma abertura sob a égide conceptual do racionalismo estético.



A originalidade grega: o racionalismo estético

O homo credulus tal como o homo faber em oposição ao homo sapiens. O sapiens é o homem crítico.

Mesmo tendo em conta a origem oriental de muitos dos materiais de que o génio grego se serviu, a sua originalidade do homem grego é inegável.

É que o importante não será a quantidade de materiais a serem trabalhados, mas a atitude.

Essa será a de um novo espírito, a exigência racional da compreensão desinteressada, a ciência.

A não ser que se demonstrasse que o conhecimento científico não é uma criação helénica ou que o grau científico já fora atingido por qualquer civilização oriental.

Ninguém tendo tentado a primeira formulação, vejamos a segunda:

A arte das numerações e figurações sendo egípcia, anterior aos gregos, só com estes se transformou em ciências, nascendo a Geometria e a Aritmética.
O mesmo quanto às astronomias caldaica e chinesa, baseadas nos registos das periodicidades e em critérios empíricos. Tales segue o empirismo dos caldeus prevendo o eclipse de 585 AC, mas só com Aristarco a astronomia se elevará à “abstracção” heliocentrista, a consolidar-se 20 séculos depois.

Se fôssemos a outros povos, maior seria a distância para com os gregos.

Os fenícios, conforme Diodoro da Sicília, não descobriram o alfabeto mas apenas modificaram os sinais alfabetiformes existentes desde a época micénica e mesmo egeia, 25 séculos AC, como afirma Dussaud.

A China é a prova decisiva de que não basta uma caótica acumulação dos dados da experiência sensorial para tornar um facto racional, ou seja, cientificamente conhecido.

Uma excepção a Oriente: a Índia. Com ela desaparece a facilidade de demarcação entre o Oriente e a Grécia.

Dum ponto de vista metafísico, a razão hindu, tal como o génio helénico, proclamou o primado da espiritualidade pura, procurando para lá da experiência imediata, da instabilidade dos fenómenos e dos limites da personalidade, o absoluto duma Essência onde repousar.

Nesta perspectiva, a metafísica hindu afastaria a tese da descoberta helénica do humano, no sentido espiritual do termo.

No entanto, se atentarmos mais fundo, o esforço de libertação espiritual das trevas da caverna mantem-se algemado à experiência imediata. Afirmando o primado da Dor, a metafísica hindu demanda uma terapêutica que lhe permita escapar ao imperativo irracional afectivo. Incapaz de subir na crítica racional, fica-se pelos diversos narcóticos dos edifícios salvívicos, seja no acosmismo bramânico ou no ilusionismo absoluto do Buda.

Nem a atitude materialista dos Çârvâkas, afirmando com o seu fundador Vrihaspati, que "não há nem céu, nem libertação final, nem alma, nem outro mundo, nem ritos de casta, nem recompensa para a virtude" é mais que uma excepção sem peso.

A hipertrofia da especulação hindu não lhe permite ultrapassar a condição de homo credulus, mantendo a actividade espiritual no plano irracional dos interesses afectivos, deixando para o génio helénico a originalidade da constituição racional da ciência.



Clareza lógica

Efectuada a demarcação epistemológica do racionalismo helénico em relação aos empírico-intuicionismos das civilizações orientais, caracterizem-se as linhas específicas dos produtos da acção criadora dos gregos:

O jogo só se transforma em arte no mais alto cume do ser espiritual.

É possível que, como afirma Delacroix, o jogo contribua para preparar a arte. Mas só se transforma em arte quando o jogador é um artista.

Tal como o racionalismo estético, isto é artístico, é o que faz elevar-se a energia espiritual helénica carregada de universalismo, procurando acima de tudo ver claro, compreender, superando para isso a realidade empírica na demanda da conceptualidade e da inteligibilidade que alimente a sua fome de clareza lógica;

A serenidade helénica não é a idílica, nem a despreocupada, nem a branda, mas é esforço e tensão, domínio de todas as emoções pela vontade da razão esclarecida num longo combate pejado de obstáculos.

Como despojo de luta, um sulco de serena melancolia frente à fragilidade do destino humano, que é também melancolia universal pelas dores da humanidade, através dos séculos, desde a primavera homérica.

A piedade chega, com Heródoto, num eco subterrâneo mas contínuo.

Se o trágico, em Ésquilo e Sófocles, tem a moderá-lo as consolações religiosas, agrava-se em Eurípedes, sem degenerar no desespero. É que há, acima de tudo, fé na coragem humana. E mesmo os finais felizes deixam, no rasto, perguntas ansiosas que questionam qualquer estabilidade afectiva ou psicológica, que confiam pois no futuro, na capacidade do homem para lhe responder deixando novas perguntas...

Mas o fundo da visão helénica do universo, ao contrário do que pensava Renan, é do sentimento profundo do destino humano, da morte e do sofrimento, face aos quais se giza a ironia dum saber imaginário. A serenidade helénica, a harmonia da “música das esferas” lembra as palavras de Paul Valéry quando dissertava sobre a angústia de Pascal: “Le silence eternel de ces espaces infinis m’ effraye”. “Odeio o mundo por causa do seu mistério”, exclamava um dos poetas da “Antologia”.

No entanto, cônscio do combate a travar, o grego mantem-se actuante sobre o terreno da realidade, procurando harmonizar-se dinamicamente com o que o rodeia.

Enquanto o hindu, especulando unicamente com os recursos do mundo interior e no mundo interior, sem a ajuda dos contributos da experiência, cinde-se com a realidade.

É que se no fatalismo hindu, o esforço dos personagens de nada vale, no drama grego, o Destino não paraliza a acção do indivíduo. Os homens caem vencidos mas depois de terem lutado. Activo face ao mundo, o génio grego humaniza-o enriquecendo o património e superando-se cada vez mais da animalidade.

Um longo e ancestral combate... revelado na lenta humanização da crença na Moira, no Destino cego.

Logo em Homero, o destino não tolhe a liberdade dos deuses e portanto dos homens, seus criadores. Em vários passos homéricos, Zeus batalha contra o poder do Fado em favor de uma favorita. Tal como no Prometeu, em que Zeus ainda trava, contra a Necessidade, a batalha pela omipotência da divindade, ao contrário do resto da obra esquiliana em que Zeus já se apodera do lugar do destino. Mas mesmo na tragédia esquiliana, com um acentuado pendor fatalista vindo da envolvência religiosa, surge a bandeira de luta da liberdade humana contra as pretensas geminações da obscuridade dos mistérios ou da hereditariedade.

A necessidade humaniza-se em vontade divina, tal como a crença popular na Inveja divina vai sendo interpretada eticamente. É assim que a Inveja divina se torna Nemésis ou justiça divina que, exprimindo, enquanto estética, a heleníssima proporção, torna-se uma exigência ética, passando a crença na existência de normas de conduta cuja violação implica o castigo.

A acção já não decorre dos ditames arbitrários de fatalismos cegos, mas da obediência a uma lei moral.

O acto de maldição, tanto em Ésquilo como em Sófocles, não é mais uma sentença arbitrária do destino ou um acto mágico, para passar a punição irrevogável, assente na convicção moral de que há pecados e alguns imperdoáveis.

Mas em Ésquilo, a própria vítima da maldição, procede como um homem livre. Herda-se a tendência para pecar mas o homem pode alterá-la. Não sendo fácil, o homem pode fazer o seu destino. Sombrio destino humano contra o qual se levanta uma verdadeira motivação para o heroísmo.

Uma serenidade melancólica constituída pela avidez de clareza racional sobre o irracional da experiência dada, alargando-se à humanização de tudo sobre que se debruça, numa actividade criativa de conjunto sintética mas também analítica ao não perder de vista o esteio gnoseológico da experiência concreta individual.



O homem europeu

Se o racionalismo helénico se mostra inconfundível em relação ao passado, o mesmo não sucede se o compararmos ao posterior desenvolvimento do pensamento europeu. Se a Grécia se finou em Coroneia, o espírito helénico ficou como a estrutura basilar da mentalidade do homem europeu que nunca mais deixou de ser racionalista.

Afirmação que, parecendo desmentida pelo aparente regresso ao homo credulus na Idade Média, careceria de esforçada defesa argumentativa, se não se verificasse que o referido retorno traduz mais o “estado de alma de uma corrente do misticismo, reagindo pela boca de Pedro Damiano” do que o modo de pensar maioritário dos tempos medievos marcado pela audácia dos dialécticos.

Em abono da tese da continuidade, sublinha-se que a Idade Média espiritual é anterior à Idade Média histórica. Na época helenístico-romana, a cultura helénica que no período dourado se distinguia pelo domínio da inteligência, vai-se enriquecendo em vagas de emotividade, que rompem os diques que a Razão até então lhes opuzera. Surge a atitude helenística de desconfiança, de incerteza, de necessidade da graça iluminante dum socorro superior às insuficiências da Razão impotente. O pensamento vai cedendo ao sentimento.

Mas não se calam as exigências racionalistas da alma antiga ante o crescendo do irracional afectivo. O neoplatonisnmo é misticismo, mas metafísico, já que quem marca os limites da Razão é ainda a razão. A realidade é na sua essência, não irracional, mas supra-racional.

Mitraísmo e maniqueísmo concorrem com cristianismo, na tentativa de ocupação do terreno úbere da religiosidade insatisfeita da alma antiga, carente de uma sementeira mística. Não é por acaso que a vitória floresce aos que seguem a palavra de Paulo. Não por ser a mais mística, mas por ser a que menos se afastava das exigências racionalistas. Ou, sendo a mais mística, e portanto a que mais riqueza afectiva trazia, era a mais racionalista.

Orígenes e Clemente, da escola catequética de Alexandria, em breve proclamarão a superioridade do cristianismo compreendido sobre o sentido. E embora preferindo o cristianismo ético de Atanásio ao mais metafísico de Ario, a Igreja nunca abdicou do direito racionalista de fundamentar a Fé. Ou, com a patrística, pela voz autorizada de Justino Mártir, identificando de tal forma as verdades de origem divina com as do esforço racional que, sem obnubilar o papel de Jesus enquanto pedra angular de todo o cristianismo, parece pretender ir buscar a Platão e Aristóteles um vislumbre antecipado das verdades da Fé. Ou se corrêssemos a Alta Idade Média, desde a rejeição do fideísmo à do optimismo racionalista de Anselmo e Abelardo, aceitando os pontos de vista moderados do conceptualismo e realismo tomistas, que conciliavam o racional e o afectivo enquanto reduziam o número de verdades da Fé racionalmente demonstráveis. Se não havia lugar para o racionalismo helénico do período de oiro, também não era possível cortar com a sua marca e regredir ao credulus. Não há regressão, mas adaptação. Se essa redução, que excluía as demonstrações a priori, obedecia ao lugar do divino acima da capacidade de racionalizar, pretendia, por outro lado, salvá-lo da chicana da refutação argumentativa.

Tal como a atitude racionalista, vinda do baptistério helénico, continua a marcar o pensamento europeu nos tempos modernos.

Se a tendência técnica ficcionada na Nova Atlântida, ameaça, desde o Século XVII, inverter a relação entre o cérebro e a mão, dando ao segundo a primazia sobre o primeiro, é ainda a herança helénica, a mesma que obstou à regressão medieva ao credulus, que obsta à ressurreição do homo faber. O Século XIX foi o mais dramático da consciência moderna, pelo conflito entre a tendência afectiva, a técnica e a puramente racional. Tendo a sua segunda metade, sido atravessada pelo drama do combate entre a espiritualidade e uma técnica que, no seu desenvolvimento incontrolado, ameaça negar os próprios objectivos de aprofundamento da vida interior, é significativo que os que pretendem considerar a ciência destronada, através das refutações dos pseudo-cientismos, se agarrem também à terapêutica afectiva, nos braços dos misticismos, como preenchimento da ansiedade espiritual. Conforme Pascal, só tem direito a bater no peito resignado o que foi com a razão até ao extremo que em que ela se afirma quando parece negar-se.



Clareza plástica

A juntar às características enunciadas do racionalismo estético como fisionomia inconfundível da mentalidade helénica, para lá da sua índole criadora e desinteressada, a dupla tendência de pulsão para a clareza, ora lógica, racional, ora plástica, artística, umas vezes, harmonizando-se, outras, conflituando.

A necessidade de clareza racional transportou o grego da mitologia para a metafísica, da aparência fenoménica e do mundo da experiência sensível para o conceito, sem se tratar dum salto abrupto na medida em que, já no período mitológico, encontramos a noção procurada de uma ordem universal necessária, negação pois dum acaso cego. Não só no plano do conhecimento como da conduta onde a inteligência, o único instrumento de luta nos conflitos com a natureza ou consigo próprio, o homem pode encontrar, entre o caos obscuro das tendências latentes, o sentido da justa comprensão, isto é do bem.

Mas não lhe basta comprender, o grego quer também ver em imagem clara o conceptual invisível. Por isso procura dar forma sensível às suas criações racionais. Eleva-se do caos a um cosmo racional, mas plástico. Libertando-se do sensível, a ele volta, depois de o recriar. Eis o duplo sentido do racionalismo estético dos gregos.

Brotando de vulcões convulsos onde incandesce a lava caótica das contradições, mutações e dissimulações...

Que Newton de Macedo, após a abertura cuja sinopse crítica intentámos, analisa na minúcia de cada passo da sua dinâmica contraditória, na religião, na arte e na moral, inserindo nas discussões as teses dos mais destacados pensadores do tempo [10], terminando em torno da “Lição Socrática”, ao seguir o fio conceptual que estruturará o berço e matriz grega do pensamento europeu, caracterizado, na essência, pela Luta pela Liberdade.



A ironia socrática aos “mestres da sabedoria”

Face ao vazio ocorrido pelo desmoronamento dos antigos valores, os sofistas, aceitando embora a razão como instrumento único da criação moral, não fizeram mais do que arranjos adaptando os valores do passado às novas situações. Sócrates, ao contrário, afronta o individualismo ascendente, proclamando o universalismo da razão, acima dos caprichos, das paixões e dos interesses particulares.

É que a queda dos quadros políticos, sociais e religiosos e, sobretudo, a derrocada da ideologia do passado, não fora ainda substituída por uma outra. O individualismo tinha pois livre curso. A razão em vez de dominar a partir da espiritualidade deixa-se dominar pelas tendências dominantes. Abandona o plano superior em que vivera aquando da especulação cosmológica presocrática e, ao virar-se para a problemática da conduta, entrega-se ao utilitarismo dos interresses momentâneos, feita terapêutica social ao serviço individual.

Nesse espaço vazio, ou nesse hiato de tempo, surgem os sofistas, demarcados do esforço de ascenção de Sócrates e Platão para restituirem à actividade espiritual a liberdade e o desinteresse.

Uns e outros pretendiam a resolução do problema dos valores morais.

Mas se os sofistas se ficam pela resolução dos problemas instantes, sujeitando a actividade espiritual às sugestões do meio ambiente, Sócrates e Platão enfrentam-nas averiguando a sua legitimidade no tribunal da Razão, que “de cima e de fora as deve dominar e não deixar-se por elas dominar”.

Menos Sócrates que Platão, pois o primeiro continuou, com os sofistas de resto, a aceitar a limitação dum irracional cosmológico, entendendo o mundo dos fenómenos naturais como o das cousas divinas, enquanto apenas o segundo, ascendendo à plena luminosidade, restitui à razão o poder de visão tanto humana como cosmológica.

Mas se Sócrates, tal como os sofistas, se alheou da cosmologia e se dedicou somente à problemática ético-política, foi utilizando a razão exclusivamente como instrumento de criação moral, o que é muito diferente da função que os sofistas lhe destinavam.

Para estes, a função da razão deveria ser proceder à conciliação habilidosa dos interresses individuais em jogo, numa função meramente casuística e particular. Para Sócrates, ao contrário, o délfico “Conhece-te a ti próprio” proclama o primado da razão, e portanto da sua universalidade, tanto sobre os valores edificados como sobre os valores a edificar.

Não basta regras que persuadam da moralidade dum acto criando a opinião de conformidade com os critérios tradicionais das virtudes; é preciso interrogarmo-no sobre o que são as próprias virtudes, através dum critério racional, sem nos determos pela força da tradição.

Os sofistas aceitam como boas as noções éticas do senso comum sem as sujeitar à crítica que avalie o seu valor de verdade. Sócrates, pelo contrário, dilata a competência da razão justamente a que essas noções só tenham validade após a sua anuência crítica.

Quando a ironia socrática fustiga os sofistas, de interrogação em interrogação, arrancando-lhes o dogmatismo e obrigando-os a definirem racionalmente as virtudes, cai por terra o manto dos Mestres de Sabedoria e surgem uns ignorantes que não fazem mais do que jogar com as conveniências do momento.

Sobre as cinzas da ideologia do passado, a maiêutica, momento construtivo da dialéctica socrática, procura levantar uma nova ideologia com a aquiescência da Razão.

Aparentemente Sócrates denota um radicalismo ético mais profundo que o dos sofistas, dando razão a Aristófanes que nele via o pior perigo para os valores tradicionais.

Mas o esforço dos sofistas ia para o ensino da melhor maneira de despertar as almas, mais pela persuasão do que pela verdade, conduzindo os velhos valores para as novas atitudes, não por respeito pela tradição, mas por pragmatismo. Preciso era o segredo do sucesso na Ágora, o novo poder.

O importante era conhecer o processo de habilidosamente conquistar para as novas atitudes a anuência dos velhos valores. Em lugar de os enfrentar, utilizando a vaguidez, flexibilizando-os no sentido das conveniências inovadoras. Respeitava-se a tradição por mero oportunismo. Pior que o radicalismo socrático, era o aparente conservantismo dos sofistas, pois traduzia um radicalismo amoral assente no cepticismo acerca das possibilidades da Razão como instrumento de criação universalista dos valores superiores.

Se Sócrates passava os valores tradicionais pelo crivo e bisturi da razão, rejeitando os incapazes de resistirem à prova da consistência racional e revitalizando os capazes, reconstruindo, através da maiêutica, as virtudes e os valores, os sofistas apenas pilhavam os escombros da velha ideologia, desenvacilhando-se ao serviço dos interesses individuais e particulares.

A razão tanto põe em causa valores do passado como o individualismo.

Sendo a razão idêntica em todos os indivíduos, a sua liberdade é disciplinada pelo carácter universal e necessário, não apenas acima dos caprichos e interesses individuais, mas também acima da liberdade espontânea, das tendências não refreadas, assim se elevando à espiritualidade racional o único lugar em que pode ser colacada a questão dos valores.

O esforço de libertação espiritual, prepertado por Sócrates, cria a convicção de que o homem tem de transpor vários planos de liberdade aparente, antes de atingir a autêntica liberdade, a liberdade na lei que a razão exprime e cria.

Não basta libertar-se da tradição para ser livre.



A luta pela humanização

É verdade que em momentos de esbatimento da censura social o homem cria a miragem de uma liberdade que ninguém limita. Se o homem não percebe que essa liberdade é apenas negativa, vinda de baixo, domínio das forças dionísiacas sobre as apolíneas, domínio sobre o que o homem tem de especificamente humano, do instinto sobre a inteligência, cai de novo na escravidão.

A luta pela liberdade é pela humanização, através do crescente domínio do humano sobre si próprio, progressiva diferenciação da série animal.

Mas se na via ascencional da racionalização crescente das tendências, o homem se liberta do jugo do que em si tem de menos humano, não se emprisionará nas grilhetas da necessidade e da universalidade da Razão? Mais clara, mas de luz álgida, sem a espontaneidade das manifestações instintivas?

Ao sair dos quadros inatos, específicos e especializados do instinto não se sujeitará a um não menos imperativo, o das categorias lógicas?

Donde o clamor, de ontem e de hoje no pensamento europeu, contra todos os dogmatismos da razão procurando estilhaçar a rigidez dos seus quadros?

A liberdade não existe na realidade enquanto indeterminismo absoluto, sem condicionamentos nem limites. E se a entendêssemos a liberdade-substância no plano divino mesmo aí ela, feita e obtida duma vez para sempre se lhe escaparia. É que, como mostrou Espinosa, no plano divino, o conceito de absoluta liberdade confunde-se com o de absoluta necessidade, já que Deus é causa de si próprio e “aquilo cuja essência implica existência”.

Não há uma liberdade sinónimo de absoluta espontaneidade. Nem no plano humano nem, facilmente, no divino.

Mas para se manter na realidade humana, depois do movimento ascencional, o homem tem de empreender, na sua dialéctica viva, o caminho para baixo. Um referencial surge com Henri Bergson. Dedicada uma dúzia de páginas ao esclarecimento do sentido bergsoniano da liberdade enquanto facto, da complementaridade da razão com a intuição, e da rejeição de qualquer espaço para a irracionalidade, ao contrário do propalado por análises redutoras, a reflexão volta-se de novo para Sócrates.



Um dionisismo racionalista ou a mística da razão

Inovador inimigo dos inovadores, conservador conduzido à morte como inimigo da tradição, eis o paradoxo de Sócrates!

Ou não enfrentasse a derrocada da ideologia tradicional, não com arranjos de fachada, mas com a radicalidade de uma reconstrução crítica de valores.

Racionalismo socrático? O que se poderá chamar dionisismo socrático, um dionisismo racionalista.

Em Sócrates, como em Nietzsche, a luta pela liberdade é pela posse plena da individualidade. Mas, enquanto no germano, a espontaneidade obtem-se através dum levantamento das forças vindas de baixo, calando as exigências racionais, o grego entende a espontaneidade não excluindo o que de espontâneo haja nas exigências racionais. De um a outro, o distante entre um dionisismo romântico e o dionisismo helénico.

Se paira a ameaça das anquiloses do pensamento discursivo, ideias feitas e lugares comuns, não é amputando a fonte discursiva que se salva a liberdade interior. Tal ablacção espiritual só pioraria, acentuando-se a emotividade incontida.

No entanto, entre a mística das ideias feitas, e a mística do sentimento, haverá lugar para uma terceira, superior, a mística da Razão.

Só esta será o ponto de apoio para resistir tanto às pressões de cima, das ideias feitas e lugares comuns, como às de baixo, as tendências incontidas, propiciando a verdadeira liberdade interior.

Nem há, nos termos da fórmula, incompatibilidade, apelando a mística para o sentimento espiritual e a razão para a clareza lógica, ou a primeira para uma unidade emotiva do sujeito-objecto e a segunda para a sua distinção.

Seria incompatível considerando-se a actividade racional unicamente na descida, esgotada de toda a criação. Ora quando, vindas de baixo, as forças dionisícas estilhaçam os conceitos anquilosados não têm de estar em desacordo com actividade racional, embora o estejam, por vezes com a razão já feita. Para que esse impulso ascencional seja amplo, é indispensável que a razão participe enquanto razão em estado nascente (ou seja crítica, criativa, gerativa) e, nesse caso, poderá chamar-se um impulso humanamente dionisíaco.

A renovação espiritual é obra do pensamento: se a lógica da invenção é diferente da lógica formal isso significa que o pensamento é mais do que “a crosta dos conceitos que à sua superfície coalha”.

Se assim entendermos a actividade espiritual como racional, desaparece qualquer incompatibilidade entre os termos mística e razão, embora também qualquer demarcação entre os dionisismos socrático e nietzschiano.

Não se trata de dar ao pensamento um sentido de empobrecido intelectualismo que desconheça a complexa riqueza da vida interior, mormente as distinções das diversas modalidades do seu exercício, afectivas, volitivas e representativas.

Nem sentido mais moderado, à mesma errado, que distinguindo tais modalidades, escamoteie a anterioridade psicológica da afectividade e volição, dando primazia à actividade representativa.
Afirmar a actividade espiritual, em certo sentido, como pensamento, é restituir ao termo o sentido cartesiano do Cogito.

É elementar que a infraestrutura da nossa vida espiritual é constituída por estados que escapam à consciência clara, agem sem ela e até contra ela, mas toda esse vida psicológica subliminar só é reconhecidamente nossa (“humanamente nossa”) na medida em que dela tomamos consciência seja para a dominar seja para nos deixarmos por ela dominar.

Na via de humanização da nossa vida espiritual encontramos três fases: uma de insconsciência, em que sendo nossa só é vista pelos outros, uma segunda, de transição, a do conflito entre a vida que nos escapa e o esforço do pensamento para a dominar, clarificando-a e tornando-a nossa, tanto cognitivamente como volitivamente e, por fim, a terceira, a do triunfo do pensamento claro sobre toda a vida espiritual.

“Quem pretender escrever o seu sonho deve estar infinitamente acordado”, cita-se de Paul Valéry. Não bastando para o integral auto-domínio, tendo o “coração razões que a razão não conhece”, ninguém lhe nega o direito a compreendê-las mais que não seja para a confissão de impotência.

A nossa vida espiritual humaniza-se pela consciência que dela tomamos.

Mas as águas vivas da nova vida espiritual, sendo as que vêm da obscuridade do instinto, não são movidas por nenhuma força atractiva da razão existente, à moda de Aristóteles, como se toda a vida espirritual estivesse suspensa por uma Razão acto puro.

Senão, enquanto razão transcendente já feita, teríamos de facto incompatibilidade entre a mística e a razão.

No entanto, é tudo mais complexo.

Das tais águas vivas, umas chegam, outras desviam-se ou dispersam-se, outras retornam perdendo-se ou acumnulando-se. Não seguem caminhos lógicos, nem mais curtos, nem se sabe para onde correm. Não há razão a dirigi-las, a encher-se com umas e a mingar com outras.

A razão que parece estar acima e de fora, a tudo dominar, é a já feita, constituída pelos conceitos que elabora, materiais petrificados que acabariam paredões instransponíveis concentracionários, se a razão em via de fazer-se que é espontaneidade não os pudesse galgar para ir mais longe.

A razão em via de fazer-se luta contra o peso morto da razão já feita, cria os próprios materiais que voltará a galgar quando estes se tornarem já feitos e ela tiver de ir mais além enquanto a fazer-se.

Por isso o facto da Liberdade é a atitude de alma em que a razão a si própria se vence, não negando-se, mas superando-se.

Ponto da confluência da razão consigo própria, e da identidade da mística com a razão na espontaneidade da nossa vida interior, eis o pressentimento grego, pela voz socrática, do caminho da liberdade.


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[1] A Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos, Gaston Bachelard haveria de dedicar uma vintena de páginas do Capítulo VIII da sua “Dialectique de la Durée”, descrevendo, comentando e enlevando até aos píncaros passos de “Ritmanálise”, obra que, segundo nota o pensador gaulês, terá sido editada no Rio, em 1931, pela Sociedade de Psicologia e Filosofia, mas cujo texto se desconhece, mal-grado o esforço que foi feito pela malograda Prof. Maria Helena Varela Santos e que tem vindo a ser feito, entre outros investigadores portugueses e brasileiros, pelo Dr. Joaquim Domingues.

[2] A questão universitária de 1919 marcou de tal forma Newton de Macedo que ele próprio a ela se refere, em nota final da sua obra “Aspectos do Problema Psicológico”, Livraria Férin, Lisboa, 1919, esperando “circunstâncias menos anormais e com maior serenidade de espírito”.

[3] Lúcio abandona o país em 1927 conforme nos relata no texto que do Brasil escreveu em 1946 para o Livro dos Testemunhos sobre Leonardo Coimbra que Sant’Anna estava a organizar e que veio a surgir em 1950: “ainda em 1927, foi para salvar a honra dessa nomeação que me vi obrigado a sair de Portugal, quando ia assumir a regência. Devia dizer isto, porque assim darei o exemplo de uma vida que sempre se mantém fiel, apesar de tudo, a um momento que terá sido o mais alto da carreira de pensamento de Leonardo Coimbra.”

[4] Sant’Anna Dionísio, in “O Diabo” 07.10.1980.

[5] Luís de Pina, “Faculdade de Letras do Porto (breve história)”, Separata de “Cale” Revista da Faculdade de Letras do Porto, Porto, 1968.

[6] Newton de Macedo, “A Luta pela Liberdade no Pensamento Europeu, A Alvorada Helénica”. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930.

[7] Sant’Anna Dionísio, in “O Diabo” 07101980.

[8] Newton de Macedo morre em Lisboa a 17.08.1944.

[9] Sant’Anna Dionísio, in “O Diabo” 07101980.

[10] Como não poderia deixar de ser numa FLUP onde o pensador francês aparece como o grande referencial das “ciências filosóficas”. Para uma noção do enquadramento mundial dos estudos newtonianos e das referências da Faculdade, veja-se o rol de autores citados por Newton de Macedo em “A Luta pela Liberdade” identificados pelo presente trabalho, sem muita facilidade, dada a quantidade de nomes mal grafados: Bérard, Victor; Gilson, Etienne; Brunschwig, Jacques; Cournot, A.A.; Poincaré, Henri; Boutroux, Émile; Müller, Max; Durkheim, Émile; Spencer, Herbert; Tylor, Edward; Mauss, Marcel; Reinach, Salomon; Lang, Andrew; Frazer, James George; Harrison, Jane Ellen; Hogarth, G.; Toutain, J; Déchelette, Joseph; Habert, O.; Müller, F. Max; Gomperz, Théodore; Lepsius, C.R.; Sayce, R.U.; Maspero, Gaston; Wiedemann, T.E.J.; Vico, J.B.; Rhode, Erwin; Chamberlain, Houston Stewart; Schleiermacher, Friedrich; Habert, O.; Croiset, Alfred.; Rhode,Erwin; Spengler, Oswald; Mann, Thomas; Dupréel, Eugène; Zeller, Eduard; Piat, Clodius; Rousseau, Jean-Jacques; Platão; Quintiliano; Ruskin, John; Zielinski, Th.; Coulanges, Fustel de; Bergson, Henri; Perrot, Georges; Diels, Hermann; Wilamowitz-Möllendorf.


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