sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Apontamentos de Filosofia Antiga


Nota prévia: este texto destina-se essencialmente aos estudantes que se iniciam no estudo da Filosofia Antiga.


Primeira Parte


As Origens da Filosofia



Quadro Político da Grécia Antiga até ao século VII

A questão das origens da Filosofia é hoje uma questão clássica mas ainda controvertida. Para a tentarmos compreender vamos recuar até ao momento no qual surgiram os primeiros Gregos.

Aproximadamente no ano 2000 a.C. estabeleceram-se na Grécia povos indo-europeus que nela se fixaram, os quais já falavam o grego.

Quanto à origem e características dos indo-europeus ainda hoje subsistem dúvidas. Poder-se-á dizer que são povos continentais, ligados à pastorícia e com uma religião ligada aos fenómenos atmosféricos.

Detecta-se no século XVI uma civilização que vai ser brilhante, a civilização dos Aqueus. Vários são os problemas que se colocam ao seu estudo e para uma parte dos quais só há conjecturas.


O que podemos dizer, com alguma segurança, é o seguinte:

  • os Aqueus são essencialmente guerreiros e encetam uma expansão pelo Mediterrâneo Oriental;
  • constituem uma série de estados entre os quais existe, ao que parece, a hegemonia de Micenas;
  • o estado aqueu é fortemente burocratizado;
  • o linear B é a escrita dos Aqueus, a qual é silábica e não se adapta à palavra oral.

Não se conhece bem a organização política e social dos Aqueus. Sob o ponto de vista político o poder está concentrado nas mãos do soberano; é muito provável que haja traços orientalizantes no estado aqueu.

O soberano vive num palácio que é uma autêntica cidadela que se ergue na parte alta da cidade. Ele governa auxiliado por altos funcionários e uma burocracia controla tudo o que se passa no estado.

Sob o ponto de vista social deve existir uma hierarquia rígida na qual a classe dos guerreiros é a mais importante.

Vejamos, agora, outros aspectos.

Os Aqueus entraram em contacto com outros povos e entre estes, deve destacar-se o cretense.

Um povo rude como o aqueu, pouco a pouco, em contacto com outras civilizações, vai-se interessando pelos aspectos artísticos; é provável que artistas cretenses tivessem trabalhado nalguns estados aqueus.

A civilização aqueia mostrou uma abertura ao exterior que é notável e neste aspecto prefigura a Grécia a partir dos finais do século IX. É esta abertura que encontramos em relação à religião.

A religião que vamos encontrar na Grécia arcaica, em boa parte, está formada no tempo dos Aqueus. Os principais deuses encontram-se já na civilização aqueia e há divindades que vêm de outras regiões, em especial de Creta.

É interessante notar-se que a religião dos Aqueus, nos tempos mais recuados, privilegiava as divindades masculinas mas, sobretudo, em contacto com Creta o panteão vai ser enriquecido com divindades femininas. Os contornos da religião grega são nítidos, portanto, antes dos poemas homéricos.

Para terminarmos a parte referente aos Aqueus façamos referência a dois problemas:

  • O primeiro diz respeito à Guerra de Tróia. Como é sabido a Guerra de Tróia foi encarada, na Antiguidade, como um conflito de grandes proporções. Todavia, para alguns historiadores, entre os quais citemos Finley e Claude Mossé, a importância da expedição a Tróia foi diminuta.
  • O segundo problema refere-se ao fim da civilização dos Aqueus. Não deve ter sido um final rápido: é possível que a destruição durasse cerca de um século (do século XII ao século XI). Apontam-se hoje várias hipóteses parecendo que se está longe de uma certeza.

Só podemos dizer que a destruição foi brutal. No século XI um monte de ruínas era o que restaria do mundo aqueu.

Pouco se sabe da Grécia entre os séculos XI e IX, o linear B desapareceu e a arqueologia não tem trazido muitas informações sobre este período.

O que se poderá dizer é o seguinte:

  • a Grécia fecha-se sobre si própria. Se os contactos com o exterior não terminam, são todavia menos frequentes;
  • a actividade económica é diminuta;
  • as concentrações urbanas praticamente não existem;
  • a escrita, que agora é alfabética, deve ter surgido nos meados do século X.

A introdução da escrita é um momento alto da civilização grega. A base da escrita é o alfabeto fenício. É clara portanto a influência deste povo. Mas o que é interessante notar-se é o facto dos Gregos não se terem limitado a importar o alfabeto fenício: para que a escrita correspondesse à linguagem oral os Gregos fizeram as adaptações necessárias.

A escrita antecede o aparecimento da polis. Esta, segundo Lévêque, teria surgido cerca de 800.

As poleis espalharam-se por todo esse vasto território que constitui a Hélade. Mas vejamos o que é a polis.

Devido à escassez de informações não conhecemos as raízes, ou seja, as razões do aparecimento da cidade-estado. O que sabemos é que de uma forma geral a polis, tem um pequeno território o que a leva a possuir, igualmente, quase sempre, uma pequena população.

Há diferenças entre o estado aqueu e a polis no tocante ao desenho urbanístico: enquanto no primeiro a cidadela, que é a residência do rei, é o lugar central, na polis surge a àgora que, nos seus primeiros tempos, é uma praça pública.

Na àgora os habitantes podiam encontrar-se, conviver e trocar ideias. Há, assim, uma maior abertura, o sinal de uma mentalidade na qual a curiosidade sobre as concepções e a vida pública devem ter, já, um lugar de destaque.

O que vai acontecer ao longo dos tempos é o que se tem chamado a fragmentação do poder político. A tendência é para o poder político se dividir por vários magistrados, colégios e assembleias. E também vários são os regimes políticos que os Gregos vão conhecer, entre os quais o democrático que atinge a sua forma mais avançada na Atenas do século V.

Ora, entre o aparecimento da polis e o final do século VII podemos encontrar, entre outros, os seguintes aspectos:

  • a Grécia está francamente aberta ao exterior;
  • a actividade económica é intensa;
  • há grupos sociais em ascensão: comerciantes, navegadores, proprietários de oficinas;
  • surge a moeda, cujo significado inicial, ainda hoje não é consensual;
  • aparecem os códigos escritos, com grande repercussão na mentalidade grega.

No final do século VII encontramos a Hélade estendendo-se da extremidade do Mar Negro ao extremo ocidental do Mediterrâneo. A Hélade é, assim, um espaço descontinuo onde a unidade é constituída por laços espirituais: a língua, a religião, os festivais pan-helénicos, entre outros. Mas a Hélade é o espaço das poleis e no período que estamos a considerar mencionemos duas faixas de colonização extremamente importantes: o litoral da Ásia Menor e aquela constituída pelo Sul de Itália e a Sicília.




Quadro cultural da Grécia Antiga até ao século VII

É frequente ao descrever-se as origens da filosofia falar-se de passagem do mito ao logos.

Tentaremos mostrar que a expressão passagem do mito ao logos é ambígua e pode deturpar o que historicamente se teria passado.

Comecemos pela questão do mito. O mito é uma história real, ou seja, o que para nós é uma fábula, uma história maravilhosa, era nas sociedades arcaicas uma narrativa verdadeira. Mas digamos, ainda, que o mito pode ter como personagens não só os deuses como os próprios homens (Cfr. M.H.R. Pereira).

A importância do mito é praticamente indesmentivel. Funciona como algo exemplar: o acto de semear ou de erguer uma casa são imitações de gestos contidos nos mitos. Um dos mais importantes é o cosmogónico, ou seja, aquele que trata das origens.

Este mito narra a forma como o mundo veio à existência e qual o papel que os deuses desempenharam nesse acto. A origem do homem era contemplada nesta exposição que era transmitida de geração em geração: o mundo assim como o homem era obra dos deuses.

Para além da dimensão do mito como modelo devemos falar da sabedoria que a ele está ligado.

O mais antigo corpo de saber que encontramos na Grécia está ligado aos sacerdotes e aos homens divinos.

Os homens divinos constitui uma expressão usada pelos gregos. Com ela queriam significar aquelas personalidades que continuando a ser humanas possuíam um dom dado pelos deuses, o que fazia que estivessem mais perto da divindade.

Estes homens tinham poderes extraordinários como por exemplo: conhecer o passado e o futuro; separar o espirito do corpo e viajar, por vezes por longos anos, com o espirito deixando de lado o corpo; descida ao Hades; poderes para deter cataclismos naturais.

Para se compreender um pouco melhor uma questão tão delicada convirá mencionar a posição de E. Morin (O Método, III ?). O filosofo francês considera que na época em que o mito é relevante as técnicas já existiam, isto é, há uma coexistência de actividades bem diferenciadas. Tal significa que é próprio do espirito humano este duplo enfoque, o que leva o homem a viver não só com a razão mas também com o mito.

No caso da Grécia Antiga podemos ver a força do mito mas também manifestações culturais, ligadas essencialmente à literatura, que ampliam e diversificam o campo do Homem.

Façamos assim uma referência à cultura Grega desde os poemas homéricos até aos finais do séc. VII.

Em primeiro lugar acentuemos a importância da Ilíada e da Odisseia. Nestes poemas viram os Gregos os seus antepassados: os Gregos são os descendentes dos heróis da Guerra de Tróia. Há assim uma dimensão histórica, sempre considerada ao longo dos séculos na Grécia Antiga.

Nos poemas homéricos o aspecto religioso é relevante: os episódios relativos aos deuses são numerosos e assim não é para admirar que a sua influência seja grande neste campo.

As qualidades ostentadas pelos heróis irão servir de modelo aos Gregos. Assim não é para admirar que Homero fosse considerado o educador da Grécia e os poemas constituíssem a base da paideia grega. Convirá reflectir um pouco sobre este ponto.

Homero será acusado por vários pensadores de contar histórias vergonhosas acerca dos deuses.

O ataque de Xenófanes a Homero inicia a querela entre os defensores da paideia tradicional e os filósofos. Mais tarde, vemos Platão, na República, criticar longamente a paideia tradicional.

Se os poemas homéricos são fundamentais todavia não fazem esquecer a Teogonia e os Trabalhos e os Dias de Hesíodo (meados do século VIII).

Os poemas de Hesíodo constituem um marco na História da Cultura Grega – vejamos alguns aspectos.

Será interessante ver que o poeta fala de si próprio na sua obra (o poeta ou poetas dos poemas homéricos não têm uma atitude pessoal).

As obras de Hesíodo apresentam outra inovação: o aspecto ético é frisado e assim a justiça é algo de agradável aos deuses.

A Teogonia é importante não só porque é um tratado sobre a religião grega mas também pela questão cosmogónica.

Há um esforço por parte de Hesíodo em colocar uma certa ordem na religião grega: ao que nos parece tudo indica que o quadro religioso grego era confuso, que as contradições eram abundantes nas biografias dos deuses.

Surge, assim, um traço de um novo espirito: há a preocupação em arrumar a matéria religiosa, há uma certa racionalização na tarefa levada a cabo por Hesíodo. Com isto não queremos dizer que se perca o sentido religioso mas sim, que começa a surgir um novo estilo.

A narrativa cosmogónica na Teogonia segue o estilo a que fizemos referência. A génese do Universo é relativamente simples e há uma certa aproximação à noção de Natureza sem implicar a perda do estatuto de importância que as divindades possuíam.

Mencionemos outro acontecimento da História da Cultura Grega: o aparecimento, nos princípios do século VII, da poesia lírica.

O poeta lírico fala de si, descreve os seus sentimentos, torna - - os públicos. É este, sem dúvida, um fenómeno relevante na Cultura Grega.

O quadro que traçamos não nos mostra toda a riqueza da Cultura Grega desde os fins do século IX até aos finais do século VII. Mas parece-nos suficiente para compreender a passagem do século VII para o VI.

Relembremos que a parte oriental do mundo grego estava em contacto com algumas civilizações brilhantes (Egipto, Mesopotámia). A polis, por sua vez, implicava uma mobilidade espiritual que a diferenciava do estado oriental.

Sob o ponto de vista cultural, a trajectória seguida, implicava uma discussão sobre temas cada vez mais amplos e complexos.

Segundo os Gregos nos finais do século VII e primeiras décadas do VI surgiu uma pleiade de personalidades a quem chamaram os sete sábios e cujos nomes variavam de lista para lista. Tales é um dos nomes presentes em todas elas.

Os sete sábios, envolvidos em parte pela lenda, são figuras diferenciadas: ao lado de legisladores e governantes surgem, também, aqueles que têm poderes extraordinários.


Vejamos algumas das suas características:

  • os sete sábios estão ligados à defesa da polis ou escrevendo os códigos ou salvando-a de catástrofes por meios extraordinários;
  • o seu saber é condensado em máximas, os apotegmas;
  • esse saber é público e algumas máximas são gravadas na pedra.

Quando chegamos a Tales de Mileto há na Grécia uma longa tradição cultural. Encontramos a inovação que não corta abruptamente essa mesma tradição. Não deve ser por acaso que Tales é um dos sete sábio e o primeiro filósofo.

O filósofo surge como o herdeiro do chamane, do sacerdote, do poeta. É detentor do saber como o eram os seus antepassados. Mas agora o saber é oferecido a quem o quiser fruir. É um saber aberto que contrasta, agora, com o circulo fechado do antigo corpo de saber.

Há uma dessacralização do saber? A resposta não é fácil. Há mitos e narrativas que perdem velocidade, que se vão tornando mais abstractos , ao longo dos tempos. Mas a religião não perde o seu prestígio e acompanhara sempre o homem grego.

Pelo que dissemos, já anteriormente, a expressão passagem do mito ao logos não é muito correcta.

O mito não desaparece com a filosofia, umas vezes enfrenta-a, outras cruza-se com ela. Na longa caminhada não há cortes bruscos, há transformações mais ou menos lentas. Nos finais do século VII havia condições para o aparecimento da filosofia. Um quadro político aberto é uma delas. Mas há também um conjunto de experiência culturais que preparam o terreno para a "aurora da filosofia".



Álvaro dos Penedos


"As Origens da Filosofia" foi extraído de Os Dias de Deméter.


Obs.: este texto também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Iniciação à Filosofia Antiga ou directamente através deste link.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Os desígnios de Apolo


Sobre a "Apologia" e o "Críton" de Platão




Uma questão a dilucidar

Dois diálogos de Platão, escritos na sua juventude, a Apologia de Sócrates e de Criton levantam, ainda hoje, problemas delicados de interpretação. Pretendemos nesse trabalho dilucidar a seguinte questão: existe ou não uma dissonância entre os diálogos?

Sejamos mais precisos. O que desejamos saber é se há na Apologia uma rebeldia em relação às leis da Cidade e no Criton uma defesa da obediência a essas mesmas leis. Ora, é fundamentalmente a esta pergunta que se dirige o presente ensaio procurando uma resposta para um tema que não é fácil.

Aproveitemos, ainda, estas linhas introdutórias para referir outra dificuldade presente nos primeiros diálogos de Platão. Como é sabido a Apologia e o Criton pertencem a um grupo designado, por vezes, como diálogos socráticos. Tal designação pretende indicar que os primeiros diálogos de Platão expõem, ou pelo menos apresentam uma forte presença da doutrina socrática.

Não será nossa preocupação o resolvermos este problema. Abordaremos a Apologia e o Criton neste ensaio sem tentarmos discernir o que é pertença de Sócrates ou de Platão.

Anotemos, apenas de passagem, que algumas linhas de força presentes nestes diálogos se prolongam noutras obras de Platão. Mas este ponto não será o fundamental do nosso trabalho.


Uma incumbência da divindade

A Apologia tem como cenário o tribunal de Atenas onde Sócrates faz a sua defesa contra as acusações que lhe são movidas. Esta defesa assenta no sentido que deve ser conferido à sua investigação filosófica. Isto é, Sócrates vai mostrar qual a natureza da sua indagação que o levou a discutir com os políticos, os poetas e os artífices pondo a descoberto a sua ignorância, procedimento esse que o levou a possuir uma série de inimigos.

É importante para a compreensão deste assunto a eguinte passagem da Apologia:


«...os que assistem a estas discussões pensam sempre que eu sou sábio naquelas matérias em que demonstro a ignorância dos outros. Tal sabedoria, Atenienses, possui-a certamente o deus, que, muito provavelmente, quis significar com o seu oráculo que a ciência do homem é de escasso ou nulo valor. E é evidente que, ao falar de Sócrates, se serviu apenas do meu nome para me apresentar como exemplo, como se dissesse: "O mais sábio de vós, ó mortais, é aquele que, como Sócrates, reconheceu que o seu saber é, na verdade, inteiramente desprovido de valor". Estas investigações, continuo ainda hoje a realizá-las pela cidade, interrogando, de acordo com o oráculo de deus, todo aquele cidadão ou estrangeiro que me parece ser sábio. E, quando chego à conclusão contrária, é em defesa do deus que demonstro a sua ignorância»[1].


Acusado de introduzir novas divindades e de corromper a sua juventude Sócrates defende-se apresentando a origem e o significado da sua indagação. É relevante nesta passagem uma concepção de sabedoria que entronca, por sua vez, no corpo de saber mais antigo. Dois pontos podemos destacar para uma melhor compreensão de um tema importante para a nossa interpretação:

  • a sabedoria só pertence à divindade;
  • Sócrates é o porta-voz do deus

Os pontos destacados, como já dissemos, remetem-nos para o mais antigo corpo de saber que encontramos presente, igualmente, nalguns pré-socráticos. Na passagem que estamos a analisar não encontramos qualquer inovação quanto à natureza do saber, isto é, encontramo-nos perante uma continuidade.

De facto, a sabedoria anterior a Tales de Mileto defendia a longa distância entre o deus e o homem no respeitante ao saber. E a filosofia pré-socrática, através de alguns dos seus representantes, irá acentuar a mesma tónica.

O que dissemos mostra o cruzamento entre a religião e a filosofia bem patente, ao que nos parece, na Antiga Grécia até aos inícios do século IV a.C. época em que são escritos a Apologia e o Criton.

Embora os dois pontos que destacamos estejam ligados entre si, o segundo é, porém, o mais importante para os objectivos da nossa indagação

A diferença entre o saber divino e o saber humano é fácil de compreender devido ao abismo que separa os deuses dos mortais. Porém, o tema do filósofo como porta-voz do deus, introduz, todavia, uma dimensão que convém analisar, embora, com brevidade.

Ser representante de deus, no campo do saber é algo de complexo. No caso de Sócrates, aquele que nos interessa neste momento, com base na passagem que vimos analisando, esta posição significa o seguinte:

  • o saber do deus é o mais importante;
  • um preceito do deus pode ser difundido entre os homens;
  • aquele que difunde o preceito divino é um instrumento do deus;
  • o homem que é um instrumento divino não é importante por ele próprio na medida em que recebeu uma determinada missão: importante é apenas o deus.

A partir dos traços que assinalámos compreende-se agora melhor qual é o núcleo da defesa de Sócrates.

Sócrates não se considera culpado dos crimes que lhe são imputados porque a sua acção não é mais do que a obediência a um mandamento de Apolo

Ao considerar que é um instrumento ou um porta-voz do deus, Sócrates prolonga uma tradição: alguns pré-socráticos apresentaram-se desempenhando um papel análogo àquele de Sócrates.

A filosofia surgia como algo de tão importante aos olhos dos seus cultores que as palavras do filósofo ou eram ditadas por um deus ou podiam ter sido proferidas por ele.

Boa parte da filosofia até aos inícios do século IV a.C. para se apresentar como o saber mais elevado, como uma paideia digna de crédito, devia trazer, portanto, a chancela da divindade. E o filósofo nesta esteira comporta-se como um homem divino na perspectiva da concepção grega deste termo.

Todas estas considerações, em que nos alongamos, irão ajudar-nos, assim ao esperamos, a analisar outra passagem da Apologia:


«...dir-vos-ei mais, Atenienses, tanto faz que acrediteis em Ânito como não, podeis absolver-me ou não me absolver, mas a minha atitude no futuro não será modificada, nem que eu tenha de sofrer mil vezes a morte» [2].


As palavras proferidas por Sócrates têm sido encaradas, por vezes, como um desafio, como uma rebelião contra as leis. Todavia, ao que nos parece, não é esta a leitura correcta da passagem, se levarmos em linha de conta o contexto em que está inserida.

Se atendermos bem, quaisquer que sejam as circunstâncias, a atitude de Sócrates terá sempre de ser idêntica em todos os momentos.

De facto, se Sócrates tem uma missão a cumprir, missão essa, convém sempre relembrar que lhe foi confiada por Apolo, ela tem de prosseguir sob pena do filósofo cometer uma impiedade.

A relação entre Sócrates e Apolo poderá verificar-se, em nossa opinião, num episódio extremamente curioso. Quando o filósofo tem de escolher a pena para o crime que é acusado vai afirmar que ele é digno de ser alimentado a expensas da cidade [3].

Não se trata, como se poderia pensar à primeira vista, de uma bravata ou de uma atitude desdenhosa em relação ao tribunal.

Em nossa opinião, o que é expresso é a consciência de Sócrates em considerar-se praticamente um homem divino [4]. Mandatado pelo deus, Sócrates tem de comportar-se dentro dos parâmetros que já foram assinalados por nós.

Pensamos que toda a esta série de considerações abrem o caminho para a interpretação global da Apologia e do Criton que ensaiaremos na parte final deste trabalho.


A Filosofia e as Leis

Debrucemo-nos, agora, sobre a diálogo Criton, que, como veremos mais tarde, completa a Apologia. Escrito logo após este último, o Criton descreve os momentos de Sócrates na prisão e o esforço do seu amigo Criton em persuadi-lo a evadir-se.

O Criton, como já tivemos ocasião de dizer, constitui uma peça importante para o nosso trabalho na medida em que é apontado como diálogo em que surge a defesa das leis da Cidade.

Uma breve análise ao diálogo Criton prepara-nos para o caminho, assim o esperamos, para responder à questão se existe ou não uma contradição nos dois diálogos mencionados.

Numa primeira leitura a Apologia pode surgir como mais agressiva apresentando um Sócrates desdenhoso da Cidade enquanto o Criton pode transmitir a sensação de um diálogo sereno no qual se faz a defesa da obediência às leis da Cidade.

Boa parte dos comentadores de Platão não tem posto em relevo, ao que nos parece, a falsa acomodação representada pelo Criton. Este diálogo, porém, representa uma crítica contundente ao regime democrático, crítica essa que Platão manterá, pelo menos, até à República. De facto, uma das linhas de força que podemos destacar consiste em não considerar o parecer da multidão como critério de verdade:


«Quem dera, Criton, que a multidão fosse capaz de realizar os maiores males, contando que fosse igualmente capaz de realizar os maiores bens! (...) o que faz é pura e simplesmente ao acaso» [5].


Sendo assim, é necessário utilizar outro critério para avaliar da justeza dos argumentos avançados por Criton a favor da evasão de Sócrates:


«Os princípios que até aqui afirmei não posso agora repudiá-los, só porque me encontro nestas circunstâncias. A verdade é que eles me parecem exactamente os mesmos e continuo a venerá-los e honrá-los como antes, (...) convence-te de que não me verás ceder às tuas razões, nem que a força da maioria tente assustar-nos, como a crianças, com o espantalho de males piores do que os actuais, ameaçando-nos com prisões, mortes, confiscos de bens» [6].


O Criton não fala da missão divina levada a cabo por Sócrates. É provável que Platão considerasse tal facto como adquirido com a Apologia. Mas não deve passar despercebido que a análise que Sócrates vai realizar tem por base os princípios que sempre defendeu. Ao longo do Criton dois pontos podem ser realçados na perspectiva do tema que nos interessa. O primeiro diz respeito ao elogio da Pátria:


«...a Pátria é algo mais precioso, mais venerável, sagrado e digno de apreço do que uma mãe, um pai e todos os antepassados» [7].


A passagem que citámos põe a tónica na importância da Cidade, no respeito que se lhe deve manifestar, o que é importante para afastar (ou tentar afastar) as suspeitas que podiam existir em relação a Sócrates.

O segundo ponto que desejámos mencionar pode ser ilustrado pela seguinte passagem:


«Obedece-nos, pois, Sócrates, a nós [as Leis] que te criámos, e não prezes os teus filhos, a tua vida, ou o que quer que seja, mais do que a justiça, para que, ao chegar ao Hades, possas alegar isto em tua defesa aos que ali governam (...). Se deixares esta vida agora, morrerás vítima de uma injustiça, praticada não por nós, as Leis, mas pelos homens; se, pelo contrário, te evadires assim vergonhosamente, responderes à injustiça com a injustiça e ao mal com o mal (...) a nossa cólera perseguir-te-à durante a vida...» [8].


Os princípios que Sócrates sempre defendeu são aplicados para se saber se é justo ou não evadir-se do cárcere e através da análise a que procede, Sócrates conclui que a evasão representaria um atentado contra as leis: portanto, a fuga é injusta, logo, impossível.

Então como conciliar, se o é possível, os dois diálogos? A breve análise a que procedemos prepara a resposta à questão.

A primazia dada à filosofia no Criton estabelece, em nossa opinião, a ligação com a Apologia: assim, estabelece-se nos dois diálogos uma linha contínua. A acção de Sócrates junto dos seus concidadãos assim como a defesa no tribunal tem como base a filosofia, e na prisão para saber se o evadir-se é justo ou não será ainda a filosofia, e não a opinião da maioria, a fornecer a resposta.


Os desígnios de Apolo

A Apologia e o Criton reflectem, em boa parte, a problemática e a actuação próprias dos finais do século V. Tendo como pano de fundo a crise aberta pela Guerra de Peloponeso deve-se pôr em relevo o empenhamento do cidadão nos negócios da Cidade assim como a sua relação com as leis.

Em Atenas, durante o regime democrático era normal o interesse e a actividade política do cidadão. Assim, não é para admirar que a Apologia Sócrates se veja obrigado a justificar o seu alheamento em tal matéria, alheamento esse que poderia levantar suspeitas quanto ao seu respeito pela Cidade.

A justificação dada por Sócrates assenta na sua falta de tempo para se dedicar à actividade política, E se é certo que o filósofo se move com dificuldade em tal terreno é certo, também, que a sua tarefa específica lhe retira disponibilidade [9].

Nesta linha é pertinente notar-se que Platão, mais tarde, continua a adoptar a mesma postura perante a actividade política. O filósofo é desajeitado num campo onde proliferam os jogos e as intrigas: o Sócrates da Apologia assim como o Platão que escreve a República encontram-se afastados da vida política quotidiana por razões que são substancialmente as mesmas.

O afastamento de Sócrates de uma actividade própria do cidadão ateniense, como já dissemos, podia suscitar dúvidas quanto ao seu respeito pelas leis da Cidade. Ora, este era um ponto importante nas concepções da Segunda metade do século V, tornado mais sensível pela crise que se abatia sobre a polis desde os finais desse mesmo século.

A crítica dirigida àquele que conspira contra a Cidade pode observar-se com toda a clareza numa passagem célebre da Antígona de Sófocles:


«se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé,
grande é a cidade; mas logo a perde quem por audácia incorre no erro. Longe do meu lar
O que assim for!
E longe esteja dos meus pensamentosO homem que tal crime perpetrar!»
[10].


Sendo assim, não é para espantar que o Criton insista no respeito pelas leis da Cidade. Mas a Apologia e o Criton, como já dissemos, não apresentam versões diferentes quanto a esta matéria.

Há nos dois diálogos, que estamos a examinar, de uma forma subjacente, o traço de uma fronteira que nos permitirá descortinar o núcleo da concepção que é defendida.

A Cidade surge com o poder sobre a vida e os bens do cidadão assim como impõe a este um conjunto de obrigações cívicas. Mas as convicções religiosas, o que levanta problemas delicados, encontram-se igualmente sob a alçada da Cidade.

Como pudemos ver na Apologia Sócrates comparece no tribunal e é condenado pelas suas ideias religiosas assim como pela sua actuação junto da juventude. E, embora, no Criton surja a possibilidade de fuga, Sócrates permanecerá na prisão para cumprir uma pena que ele, todavia, considera injusta. É, assim, claramente aceite o poder da Cidade sobre a vida do cidadão.

Na Apologia assim como no Criton, conforme o que já foi analisado, a actividade filosófica entendida na perspectiva de Sócrates permanece inalterável através de todas as circunstâncias.

Ora, como é que tudo isto é possível?

A resposta está no facto de a Cidade não ser considerada com o poder de interferir em determinado plano e em determinado tipo de actuação.

Se é apresentada a concepção segundo a qual o saber pertence à divindade e que esta pode incumbir um homem, no caso concreto Sócrates, de uma missão cujo núcleo é a transmissão de um mandamento, então estamos perante um plano que está acima dos homens e da Cidade.

Sendo assim, Sócrates tem de cumprir uma missão que, embora, se processe no interior da Cidade tem uma origem divina.

Subjacente à Apologia descortina-se um conflito, já antigo, entre o que se denomina lei não escrita (ou divina) e a lei [11].

Encontramo-nos, segundo a nossa opinião, perante a grande questão que os dois diálogos procuram resolver. É aqui que vamos encontrar a resposta ao problema que levantámos. E ainda, em nossa opinião, a Apologia e o Criton vão resolver este problema, de uma forma original, embora, não isenta de alguma ambiguidade.

Sócrates, tendo de obedecer ao deus, deve continuar a filosofar, mesmo que isso lhe custe a vida. Mas se se deve respeitar a lei divina, por outro lado não se deve subverter as leis da Cidade.

Pensamos que neste momento se torna clara a posição de Sócrates na Apologia e no Criton: acusados por três cidadãos comparece no tribunal, é condenado, embora o considere de uma forma injusta e permanece na prisão aguardando a morte, não obstante ser possível a sua fuga.

É nesta perspectiva que o Criton é fundamental para a compreensão de todo este problema, embora prolongue a Apologia, como já tivemos ocasião de dizer. É possível dizer que a Apologia não fosse suficientemente clara quanto à relação do filósofo com as leis da Cidade. O Criton representa um esclarecimento quanto a este ponto e está preocupado em mostrar a actividade filosófica de Sócrates como não representando uma subversão para a Cidade.

Como já vimos, o Criton ao fazer a apologia da obediência às leis considera, como é óbvio, uma falta grave o desrespeito às leis da Cidade. Sendo assim, condenado à morte o filósofo deve aceitar esta decisão, não devendo fugir, o que seria um atentado à Cidade, ou seja, uma subversão às suas leis.

Neste momento, ao chegar-se ao final deste trabalho poder-se-á dizer que a solução para um tema complexo é ela própria complexa e mesmo heterogénea, se a nossa leitura estiver correcta. Mas podemos dizer que a complexidade nasce, em boa parte, da defesa realizada por Platão para mostrar, por outro lado, a importância da missão de Sócrates, e por outro lado, o seu comportamento exemplar de cidadão.

Surge, assim, uma dupla obediência, ao deus e à Cidade, que reduz ao mínimo o conflito. Ao obedecer ao deus, Sócrates é alvo de um condenação e na perspectiva dos dois diálogos analisados essa condenação tem de ser suportada para salvar as leis da Cidade. Em boa parte, o que podemos verificar é que Sócrates dá à divindade o que lhe pertence e à Cidade o que lhe é igualmente devido

E assim, se cumpriam os desígnios de Apolo.


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[1] Platão, Apologia de Sócrates. Criton, Coimbra, I.N.I.C., 1984. Introdução, versão do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulquério, 23 A-B.
As citações destes dois diálogos são extraídos desta edição.
Indiquemos, ainda, as seguintes edições portuguesas destes diálogos de Platão:
Êutifron. Apologia de Sócrates. Citron. Tradução, introdução e notas de José Trindade dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1985;
Apologia de Sócrates. Tradução de António Monteiro e notas de Luís Martins, Sintra, Mar-Fim, 1988;
Apologia de Sócrates. Tradução, prefácio e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães Editores, 1988.

[2] Apologia, 30 B-C.

[3] Apologia, 36 D-37 A.

[4] Significativo desta consciência são as seguintes passagens:

«Pois se me fizerdes morrer, não achais facilmente outro homem como eu ligado a esta cidade pelo deus...» (Apologia, 30 E);

«Ora que eu sou realmente um homem dado pelo deus à cidade...» (Apologia, 31 A B.).

[5] Criton, 44 D.

[6] Criton, 46 B-C.

[7] Criton, 5

[8] Criton, 54 B-C.

[9] Sócrates dedica-se a tempo inteiro à missão e a prova consiste na sua pobreza. Mas não deixa de afirmar, também, perante os juízes que se se tivesse dedicado à actividade política, devido ao seu sentido de justiça, já teria morrido! (Cfr., Apologia, 31 A-A E ).

[10] Sófocles, Antígona, Coimbra, I.N.I.C., 1984. Introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, vv. 369- 377.

[11] Manuel de Oliveira Pulquério apresenta um cotejo, muito sugestivo, entre a Antígona de Sófocles e o Criton:

«Antígona é a jovem heroína que se revolta contra o édito do soberano Creonte, seu tio, que proíbe dar sepultura a Polinices, irmão de Antígona, morto em combate contra Tebas. Ao prestar honras fúnebres ao irmão, Antígona sabe que infringe a lei do Estado, mas fá-lo em nome da obediência a leis mais altas, as leis divinas (...).»

Divergirão, em matéria tão importante, os pensamentos de Sócrates e Sófocles? Parece que não. Recorde-se que, no caso de Sócrates, não há oposição entre as leis do Estado e as leis divinas, em vigor no Hades. «A obediência não se encontra, assim, dilacerada entre dois deveres» (ob. cit., p.61).
Como se poderá verificar pelo nosso texto não seguimos a conclusão de Oliveira Pulquério.




©Álvaro José dos Penedos


"Os Desígnios de Apolo" foi retirado de Os Dias de Deméter.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O “quê


Antes de mais, desmistifiquemos o título. Poderia sem dúvida interpretar-se como uma interrogação simples (“O quê?”). Ou mesmo como uma interrogação exclamativa manifestamente censória (“Quê?!” – “Hã?”)… O que até nem era de estranhar, in medias res, se nos ativermos ao contexto de “Crítica” que particulariza, e de que se orgulha, o pensamento filosófico! Como aliás nos dizia Agostinho da Silva, “O mundo avança na medida em que alguém pergunta”.

Mas não. Pelo menos hic et nunc (longe de mim...)!

O meu “quê” não é mais do que a tradução de apenas um dos seis conhecidos tópicos (muletas?), em métrica latina, da retórica clássica: quis, quid, ubi, cur, quomodo, quando. O “quid”, precisamente.

Não pretendo porém socorrer-me da autoridade de Wittgeinstein, no preciso sentido de que “os factos” fiquem presos da linguagem, ou seja, não pretendo que o meu “quid” se torne num signo componente de um qualquer “facto atómico” (i.e., apenas mostrado, não dito!), obviamente numa linguagem de proposições em si mesmo atómicas. Pelo contrário, prefiro aqui evitar, na linha da Teoria da Verdade, de Tarski, a praga do significado das palavras. Tentarei portanto agarrar um problema factual e a sua respectiva resistência à discussão crítica.

Tampouco tenho qualquer presunção (como seria óbvio, descabida), de satisfazer os requisitos que Michel Serres atribui concretamente ao pensamento filosófico: “O único objecto ou a única ocasião da filosofia reside na ‘novidade’que emerge da atenção às ‘circunstâncias’.Ora, se não consigo atingir a “novidade”, pelo menos compete-me ensaiar algum esforço nesse sentido, nem que seja apenas pela “oferta” da atenção das “circunstâncias”. Enfim, procuro não “tentar encher bidões velhos com vinho novo”, como dizia Werner Eisenberg (in Physique et philosophie).

A questão que me proponho tem, assim, origem numa circunstância, ou melhor, em duas:

  • O ensaio do Prof. Ribeiro Graça – “ENSINAR, DESDE SEMPRE – Notas sobre o ensino da Filosofia Antiga ”;
  • O Comentário do Prof. Levi Malho, de 25-07-2007, sobre o mesmo texto.

É que, apesar de termos já à nossa frente um “Texto” brilhante e um brilhante “Comentário”, quer um quer outro não deixaram no entanto de me atiçar, a propósito, alguns pontos de vista, obviamente bem mais modestos (hélas!). Mais uma “vítima” da Filosofia… (sem proveito, mas “feliz”)! Por isso mesmo, perdidamente tocado pelos Estóicos, pareceu-me que deveria agarrar a natural coerência das “coisas”, e tentar conquistar (qual D. Quixote!) a salvífica libertação interna, por um lado, e a possível liberdade cósmica, por outro.

Nada porém que se assemelhe a um “ensaio”!

De comum (Texto/Comentário), um fio condutor nitidamente visível: a proeminência da “Filosofia Antiga” (Texto), projectada “no campo da Filosofia” (Comentário).

Mais especificamente:

  1. A questão da “parceria curricular da ‘Cultura Clássica’ ” … “erradicada do plano de estudos do Curso de Filosofia.” (cf. Texto, ponto 2.).
    Para configurarmos melhor o assunto, diremos que o Prof. Ribeiro Graça, parafraseando aliás as palavras de Guthrie no tocante à sua História da Filosofia Grega, rebate (e bem) tal erradicação: “sempre que partíamos para a ‘Filosofia Antiga’, a ‘Cultura Clássica’ funcionava como o mapa do país que tínhamos de atravessar.” (cf. Texto, ponto 6).
    De resto, é notável o rigor científico e a clareza que nos transmite, quando salienta, vigorosamente, o autêntico estatuto e dignidade da Filosofia Antiga. A Filosofia Antiga é antiga" – diz-nos – não por ser antiga, mas por ser pioneira, além de necessária e actual, no quadro da investigação filosófica (cf. Texto, ponto 1).

  2. Uma queixa (ou denúncia?!) do Prof. Levi Malho, pela classificação, ao nível universitário, da “Filosofia Antiga” como “uma mera sub-secção da ‘História’, variante ‘História da Filosofia’, compartimento T0 da ‘Filosofia Antiga’…” (cf. Comentário).

Neste emaranhado de considerações sobre Filosofia Antiga e Cultura Clássica, no contexto da Filosofia e da História da Filosofia (com extensão, como é óbvio e por coerência, à Filosofia Medieval, Moderna, Contemporânea e respectivas “Culturas”), parece-me que, no fundo, o problema é, sem dúvida, “o quê” da Filosofia, por um lado, e da História da Filosofia, por outro. Ou melhor, o “quê” que as une ou as separa (se é que podemos concebê-las autónomas!).

Esta polémica é alimentada por teses díspares, e por autores de estatura intelectual relevante. A verdade é que estes continuam a manter o seu reduto, quase dogmaticamente! Porquê?! Não me compete, agora, uma resposta. E, muito menos, respostas. Mas julgo que há necessidade, urgência mesmo, de sairmos desse “sono dogmático”, sob pena de vermos a Filosofia entrar em coma. “A filosofia não é sonambulismo, mas sim consciência desenvolvida".[1]


Vejamos:

  1. Se entrarmos pela via simplista das “definições” (sempre difíceis e castradoras), chegamos com facilidade a uma noção consensual de Filosofia e História como disciplinas autónomas. Poderemos sentir alguma dificuldade em encontrar uma definição abrangente para a “Filosofia”, mas não a temos com certeza relativamente à “História”.
    Como “memória da humanidade”, a História debruça-se sobre “objectos passados” (naturais ou humanos), enquanto “páthos” do próprio homem – é verdade! – Mas sempre datados e localizados, ou seja, situados em “um tempo” e “um espaço”. Ou então… não seria “história”!
    Se quisermos porém avaliá-los, e pesar o seu “significado” em termos de interacção transversal, quer ao nível do indivíduo, quer ao nível social, ou mesmo cosmológico, já não estamos certamente no terreno da “história”, mas sim da “filosofia da história”.
    Não se pretende aqui insinuar qualquer desvalorização dos seus objectos ou da sua metodologia.

    “O passado e a verdade são dois mitos que perseguimos incansavelmente. O passado está, irremediavelmente, para trás de nós. A verdade estará, eventualmente, um dia à nossa frente. O historiador é aquele que acredita que a sua missão é dar-nos acesso a ambos. Essa meta é, simultaneamente, o seu grande mérito e a sua maior debilidade.

    A história não é a verdade sobre o passado. A história é uma versão plausível de fragmentos desse desconhecido que tanto fascínio exerce sobre todos nós mas que só alguns arrostam com a responsabilidade de esclarecer.”[2]

    Mas temos consciência da perfeita demarcação de domínios entre “História” e “Filosofia da História”.

  2. A questão muda radicalmente de figura, quando falamos de “História da Filosofia”.
    Naturalmente que não estamos a falar da história das bonecas russas, nem sequer da evolução do Australopithecus até ao Homo sapiens sapiens, etc., etc. …Mas sim da história da própria “filosofia”! Ou seja, admite-se que a “filosofia” possa apresentar-se redutoramente – parece – como “objecto histórico”!
    Sabemos que o conceito de “história da filosofia” assenta numa patológica perversão escolástica do séc. XIX, consagrada pelo Positivismo. Só por isso, deveria merecer algumas reservas.
    Como nos diz o Prof. Joaquim de Carvalho [3], “O aparecimento tardio tem fundamento no facto do objecto da História da Filosofia não ser imediatamente dado, como os seres e os aconteceres da Natureza, mas ideado, como é próprio das funções e dos produtos da Cultura”.
    Por outro lado, parece igualmente ilegítimo (ou pelo menos ambíguo) catalogar o pensamento filosófico por “cortes epocais”, amarrando-a à dinâmica fixista dos paradigmas da cultura e do conhecimento científico. Como se o “filósofo 2” tivesse necessariamente de ser precedido pelo “filósofo 1”, e vice-versa... Isto seria a negação da essência do próprio “filosofar”!
    Verifica-se assim que a chamada “História da Filosofia”, ou não problematiza, como objectos históricos, os sistemas conceptuais que os seus protagonistas produzem, e logo se põe em causa quer a sua metodologia quer o seu valor científico, enquanto “história”; ou os problematiza, e então nem os releva como “factos históricos” em si nem os contextualiza na sua historicidade, mas sim na unidade e na totalidade conceptual para que tende o pensamento filosófico. E não temos, positivamente, “História da Filosofia”, mas sim (admitamo-lo para já…) uma hipotética “Filosofia da História da Filosofia”.
    A “História da Filosofia” não existe, portanto, a não ser “artificialmente”, ancorada na “Tradição”. E, por analogia com o pensamento de Kant, teria aqui de rejeitar, como anticientíficos, quer o argumento da “Verosimilhança” (conjectura), quer o do “Senso Comum”[4].
    E parafraseando ainda Kant, perguntaria: “Como é possível a ‘História da Filosofia’?”.
    Neste sentido, a classificação da “Filosofia Antiga” como “uma mera sub-secção da ‘História’, variante ‘História da Filosofia’, não passaria de uma falácia demasiado plebeia!
    O problema fundamental que se nos oferece, portanto, é a (i)legitimidade da redução da Filosofia a um objecto histórico. Ou seja, está em causa não só o problema da definição de História da Filosofia (enquanto tal) como, sobretudo, o da própria “essência da filosofia”.

  3. A “História da Filosofia” (com essa trágica denominação positivista) tem sido tolerada pela comunidade científica. A sua autenticidade, porém, não pode ser conotada com a natureza ou essência da “Filosofia”. O próprio Hegel, apesar do relevo que lhe atribui como explicação do seu “devir” (materializando no seu “cronismo” a ambição imperial da “verdade absoluta”), foi sem dúvida o “génio” que revolucionou o seu objecto e o seu conceito, introduzindo toda a sua problemática no domínio dos “problemas filosóficos”, ou seja: “É o conceito de história como profecia ao contrário, como desenvolvimento necessário de um todo completo e, por conseguinte, como uma totalidade imóvel e privada de desenvolvimento, como um eterno presente, sem passado e sem futuro.”[5]

Hegel “arruma” as “histórias” da filosofia, ou “as histórias dos filósofos”, reduzindo o recenseamento não teórico dos seus pensamentos (mais rigorosamente, Hegel considera que “as fontes da história da filosofia não são os historiadores, mas os próprios factos a nós presentes, ou sejam as obras dos filósofos”[6] a um duplo problema teórico:

  1. Qual, e onde, a “unidade” do objecto filosófico;
  2. Como se processa o “desenvolvimento” desse objecto lógico-filosófico na “história”.

Esta teorização da procura da “verdade absoluta” e da sua “historicidade”, no pressuposto de que a Filosofia poderia manter “cronologicamente” a sua “essência”, para além das “aparências”, parece no entanto paradoxal. Como história da sua “essência”, seria a história da “MESMIDADE”. Ora, por natureza e definição, a História analisa a “ALTERIDADE”. Donde, ou se considera a “Mesmidade”, e não haveria “História da Filosofia”, ou se considera a “Alteridade”, e tal “História da Filosofia” não interessaria aos filósofos.

Naturalmente, Hegel propõe-nos a conciliação da continuidade (manifestação contínua da “essência” na temporalidade,) com a alteridade, através do seu próprio “sistema”. Isto é, transpõe a “História da Filosofia” para a “Filosofia da História”.

Como também diz Russell: “Para compreender uma idade ou uma nação temos de compreender-lhe a filosofia, e para isso temos de ser em qualquer grau filósofos.”[7].

Mas, genericamente, nem sequer é essa noção hegeliana a que se tem da História da Filosofia. Trata-se de um acervo de factos, biografias, e enumeração (mais ou menos “erudita”) de doutrinas ou ideias contextualizadas numa época, numa cultura. Foi mesmo sob esse signo que ela nasceu; repetindo o Prof. Joaquim de Carvalho, como “um produto tardio e avançado da Cultura.”[8]. Neste sentido, teremos então que distinguir entre Filosofia e História da Filosofia (Filosofia/Erudição). “Filósofo” é o que “pensa”. Erudito é o que “sabe”. Os próprios instrumentos de pesquisa são diferentes. Para o filósofo, a Hermenêutica; para o erudito, a Heurística.

Assuma-se então, com a devida “coragem filosófica”, que a “História da Filosofia” foi baptizada com nome falso. O seu “nome” verdadeiro é “Cultura Filosófica” (que simplesmente poderíamos considerar no âmbito geral de “Cultura”). Nietzsche, aliás, já deu o respectivo soco-no-estômago a muita filosofia mistificadora ocidental.

Se quisermos isolar “sistemas filosóficos”, por um lado, no contexto do “desenvolvimento do pensamento filosófico”, por outro, só o poderemos fazer como “função” das respectivas “Culturas” (delimitação espacial e temporal da Cultura).

Resulta daqui uma conexão perfeitamente lógica e necessária (penso eu) entre “Filosofia” e “Cultura”.

Donde, concluiria com a arquitectura metodológica seguinte:

  • Filosofia Antiga ->Cultura Clássica
  • Filosofia Medieval->Cultura Medieval
  • Filosofia Moderna->Cultura Moderna
  • Filosofia Contemporânea->Cultura Contemporânea

E restará suficientemente clarificado (creio) o meu “Quê” (o “quid”). E de alguma maneira explicado (penso também) o referido “paradoxo” hegeliano.



Porto, Agosto de 2007

Bernardino Pereira



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[1] Hegel, Introdução à História da Filosofia. Coimbra, Arménio Amado – Editor, Sucessor, 1980, 4.ª Ed., p. 83.

[2] Lídia Cardoso Pires, As Mil e uma histórias, Porto, Revista da Faculdade de Letras – Filosofia, II Série, vol. XV-XVI, 1998-99, pp. 211-212.

[3] Hegel, opus. cit. (in Prefácio, p. 7).

[4] Immanuel Kant, Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, Lisboa, Edições 70, p. 168-171.

[5] Nicola Abbagnano, História da Filosofia, vol. IX, Editorial Presença, 4.ª Ed., Lisboa, 1991, p. 131.

[6] Hegel, opus cit., p. 166.

[7] Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, Círculo de Leitores, Primeiro volume, p. 7.

[8] Opus. cit., p. 14.


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sábado, 4 de agosto de 2007



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