terça-feira, 11 de dezembro de 2007

A "Entrevista ao Prof. Doutor Levi Malho", realizada pelo Dr. Bernardino Pereira, está disponível no Site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob os ítens Novidades; Conteúdos/ Ensaios e Estudos e Conteúdos/ Entrevistas, ou ainda directamente através deste link.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007


No primeiro número da Revista Cultural do Departamento Cultural da AEFLUP, de Novembro de 2007, estão publicadas entrevistas conduzidas pela revista supra-citada aos Professores Doutores José Augusto Graça, Lídia Pires e Elsa Pacheco.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007


A "Entrevista ao Doutorando Lutecildo Fanticelli", realizada pela Dra. Anabela Azevedo, está disponível no Site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Entrevistas, ou directamente através deste link.

domingo, 11 de novembro de 2007

Temos o prazer de anunciar o lançamento do site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga em


O site possui um interface no qual as nossas publicações virtuais podem ser lidas de uma forma mais confortável, além de incluir outras secções. Está ainda ligado a um forum de discussão nosso sobre a Filosofia Antiga, aberto a todos aqueles interessados em debates virtuais sobre o tema.

No site serão incluídos os artigos mais longos, enquanto que este blog permanecerá ainda ligado ao site e será utilizado doravante para a publicação de notícias breves.

Aguardamos a vossa visita ao site e a vossa participação no forum da A.F.A.!

terça-feira, 23 de outubro de 2007


O primeiro módulo dos Cursos Livres, "Cultura Clássica - Os Poemas Homéricos" está a decorrer na sala 201 da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Encantamentos



Platão e as artes de Abáris dos Hiperbóreos





1. O prestígio dos xamanes

A Grécia antiga foi pródiga na produção de narrativas religiosas e fabulosas (relembremos a Odisseia) e algumas destas últimas entraram no imaginário ocidental.

A religião dava uma ajuda substancial a essa produção: deuses olímpicos, titãs, daimones, ninfas, tinham influência profunda no quotidiano do grego e povoavam a sua imaginação.

Personagens extraordinárias pontuaram esta mentalidade ao longo do tempo.

As feiticeiras tiveram um lugar de destaque. Já na Odisseia a ninfa Circe surge como uma feiticeira que utilizando um filtro põe em perigo Ulisses e os seus companheiros [1]. E na segunda metade do século V Eurípedes com a tragédia Medeia apresentava esta princesa bárbara, feiticeira cruel, vingando-se da sua rival com os poderes que possuía [2].

Não é este tipo de personagem, todavia, que nos vai interessar no nosso ensaio. É o xamane que essencialmente vai ser o objecto da nossa atenção. Entre o feiticeiro e o xamane há algum contacto: ambos são capazes de operar prodígios, têm um poder que o homem comum não possui.

As diferenças, porém, entre o feiticeiro e o xamane são consideráveis. Este último é uma figura protectora da comunidade: preocupa-se com o destino da alma dos membros da sua comunidade, sendo ele que as conduz para o território além-túmulo. Surge como um elo de ligação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses e assim é considerado um homem divino.

Entre os seus prodígios contam-se a capacidade de separar a alma do seu corpo durante períodos, por vezes muito longos e o defender a comunidade de pestes e cataclismos naturais.

O xamane surge como o depositário da mais antiga sabedoria. Essencialmente essa sabedoria tem por âmbito as coisas divinas e o destino da alma mas a sua palavra, igualmente, é capaz de acalmar e de curar.

O que dissemos sobre o xamane não pretende, de forma alguma, constituir uma exposição, em profundidade, do papel desempenhado por este personagem [3]. Pretendemos, sim, facilitar a compreensão do nosso texto.

Há um ponto que gostaríamos que ficasse claro quanto à nossa posição perante tais matérias.

Ao historiador interessa estudar e compreender o significado de determinadas correntes. O que está em causa neste trabalho é o xamanismo. Não é pertinente se estamos ou não perante um charlatanismo.

Se existe um grupo de personagens deste tipo, rodeado pela aura do fantástico é porque esse grupo era constituído por homens de grande prestígio [4].

Os gregos, na sua grande maioria, olharam-nos como seres prodigiosos aceitando, portanto, como verdadeiros os gestos dos xamanes. O historiador não pode esquecer-se do longo período que o separa dessa época o qual determina padrões de comportamento dissemelhantes.

Nesta parte introdutória do nosso ensaio apontamos ainda o xamane como um antepassado do filósofo. E como antepassado deixa, também, marcas profundas e explícitas nalguns pensadores gregos.

Citemos como exemplos, embora bem conhecidos, Pitágoras [5], Parménides [6] e Empédocles [7]. E no tempo de Platão, como mostrou Dodds [8], o antigo saber estava ainda bem presente.

É certo, porém, que a partir da Guerra do Peloponeso há uma crise religiosa que se prolongou pelo século IV. Uma descrença no papel desempenhado pelos deuses e actos de impiedade são atestados com clareza no período mencionado. Ao lado desta atitude encontra-se, como dissemos, um espírito religioso o qual prolonga a tradição.

É neste quadro, cuja complexidade passamos ao largo, que se insere o trabalho que realizámos.

Gostaríamos de apresentar, ainda, duas considerações preliminares para uma melhor compreensão do que se vai seguir.

Em primeiro lugar diremos que a nossa pretensão é estudar as relações de Platão com o encantamento representado essencialmente pelos xamanes.

Como veremos, assim o esperamos, a questão que pretendemos tratar é complexa e tem provocado interpretações bastante diversificadas.

Em segundo lugar o trabalho incide sobre algumas passagens de dois diálogos de Platão: o Cármides e o Fédon. Pontualmente far-se-á referência a outros diálogos sem a preocupação de tratarmos exaustivamente o nosso tema fora dos dois diálogos citados.



2. Uma poção para as dores de cabeça

Vamos iniciar a nossa indagação com a análise de um conjunto de passagens do diálogo Cármides, o qual nos oferece um exemplo de encantação.

Em determinada altura, Critias referindo-se ao jovem Cármides diz a Sócrates o seguinte:


Há momentos, dizia-me que, ao levantar-se pela manhã lhe doía a cabeça. Pões alguma objecção em fingires diante dele que conheces um remédio para as dores de cabeça? [9].


Depois de Cármides ter chegado junto a Sócrates e perguntado qual o remédio para o seu mal prossegue o diálogo:


Respondi que era uma planta, e que à poção se ligava um canto mágico. Se alguém o entoasse enquanto o usava, o remédio deixá-lo-ia absolutamente são. Sem o canto mágico, porém, de nada valeria a planta [10].


A passagem acabada de transcrever mostra um determinado tipo de encantação. A poção a administrar só tem efeito quando acompanhado por um canto. E como podemos ver também esta encantação não tem por objectivo o trazer qualquer malefício a alguém mas sim libertá-lo da dor.

No diálogo, Sócrates vai acrescentar alguns pormenores extremamente interessantes ao remédio que está a receitar:


esta encantação que eu aprendi lá no exército, com um dos trácios médicos de Zalmóxis, que segundo se diz, também conferem a imortalidade [11].


Esta passagem é relevante. Há a referência aos trácios, a Zalmóxis, figura que foi divinizada. E neste momento é conveniente fazer uma pausa e destacar dois pontos:

  1. Sócrates inventa uma história acerca de uma poção mágica, ou seja, há um discurso na base de uma ficção por parte do filósofo sobre o encantamento;
  2. não obstante a ficção, o discurso de Sócrates aparece como verosímil chegando ao pormenor de falar dos médicos trácios e de Zalmóxis, este ligado ao xamanismo que influenciou os gregos.

O discurso sobre a encantação vai continuar aprofundando e ampliando o que foi dito anteriormente.

Segundo o médico trácio para curar a dor de cabeça é necessário curar todo o corpo mas curar o corpo implica o tratamento da alma [12].

Pela sua importância a concepção exposta vai levar-nos de novo a colocar dois pontos para uma melhor compreensão da questão:

  1. na cura de qualquer parte do corpo é necessário levar em linha de conta a sua globalidade, ou seja, todas as partes são interdependentes porque o corpo actua como um todo;
  2. a referência à alma é relevante: é de sublinhar o facto de a saúde estar ligada à alma. Quer dizer, portanto, que uma doença do corpo deve ser tratada através da alma.

Sócrates ao prosseguir, ainda, a sua conversa sobre este assunto, afirma que os médicos gregos não compreendiam a maioria das doenças devido ao seu desconhecimento da acção da alma sobre o corpo [13]. E Sócrates acrescenta ainda:


Dizia ainda, meu caro amigo, que a alma se trata com estas encantações, encantações essas que consistem em belas conversas. É destas conversas que nasce nas almas a prudência. [14]


Todas estas informações leva-nos a um comentário com a pretensão de destacar toda a sua importância.

O discurso de Sócrates que expõe a conversa fictícia com o médico trácio apresenta uma progressão extremamente interessante: o encantamento é aplicado a uma parte do corpo (neste caso a cabeça), depois é aplicado a todo o corpo e por fim deve ter por objecto a própria alma.

Notemos ainda, nesta altura do diálogo que a cura da alma faz-se com encantações, ou seja, as conversas que fazem nascer a prudência. A relação entre a encantação e a prudência é fundamental no diálogo Cármides e isso mesmo tentaremos mostrar noutra parte deste ensaio.

Debrucemo-nos, entretanto sobre dois temas abordados no discurso de Sócrates, merecedores igualmente da nossa atenção: o da alma e o da medicina.

As dificuldades que envolvem a cronologia dos diálogos de Platão limitam, em parte, o nosso esforço de dilucidação dos temas assinalados. Podemos, todavia, dizer que o Cármides é um diálogo da juventude colocado entre o grupo constituído pela Apologia de Sócrates, Críton e o Êutifron o qual deve marcar o início da carreira literária de Platão e o Protágoras a fechar, em nossa opinião, o primeiro período da sua actividade literária [15].

Após estas observações preliminares necessárias, quanto a nós, para colocar o mais correctamente possível as questões acima referidas, vejamos a da medicina.

As referências de Platão à medicina são numerosas e significativas na sua obra, em tom francamente elogioso [16].

Na passagem já citada do Cármides há, todavia, uma crítica aos médicos gregos. Qual o sentido desta crítica?

Ao que nos parece Guthrie resolve a dificuldade. Segundo o historiador inglês a crítica de Platão não atinge a totalidade da medicina grega na medida em que a concepção do médico trácio seria idêntica à da escola hipocrática [17].

É importante a atitude do filósofo. Por um lado mostra que já no período da juventude a reflexão sobre a medicina estava presente por outro que existe nesse momento uma crítica a uma escola de medicina grega.

Se a referência à medicina é importante não o é menos a noção de alma que transparece no Cármides.

Digamos desde já que a alma neste diálogo não apresenta a complexidade com a qual nos surge no grupo constituído pelo Fédon, República e Fedro [18].

A reflexão aprofundada sobre o tema da alma surge após a primeira viagem de Platão ao sul da Itália e à Sicília, onde o contacto com os pitagóricos levou o filósofo a preocupar-se, em maior escala, com alguns problemas que surgirão com insistência a partir do Górgias [19].

No Cármides a alma aparece como a parte mais importante do Homem o que não constitui propriamente uma tomada de posição original. Mas surge igualmente como uma entidade simples, como já dissemos, capaz de influir no corpo.

Pensamos, porém, que é importante notar que o dualismo corpo-alma está ainda ausente do pensamento platónico. A noção do corpo como cárcere da alma não é da época na qual Platão escreveu o Cármides: é posterior e deve-se à influência pitagórica referida anteriormente.

As nossas observações incidem até este momento nalguns passos do Cármides relevantes para os objectivos do nosso trabalho. Mas existem outras passagens do mesmo diálogo as quais nos permitem ir mais longe na compreensão do platonismo quanto ao tema que nos está a ocupar. Vamos, agora apresentá-las.

Em determinado passo do diálogo diz Sócrates ao jovem Cármides:


Mas a questão é esta: se como afirma Critias, já possuis a prudência e é suficientemente prudente para quê as encantações de Zalmóxis ou de Abáris dos Hiperbóreos? [20].


Esta passagem mostra em primeiro lugar que quem possui a prudência não necessita de ser encantado. Ele está curado, está de saúde, ou seja, já foi encantado. É este, quanto a nós, o sentido da passagem citada.

Outro aspecto a salientar, em segundo lugar, é a referência aos xamanes. Depois de Zalmóxis ter sido mencionado é a vez de Abáris dos Hiperbóreos figurar ao lado do primeiro.

É interessante notar-se que Platão menciona os xamanes mais famosos e admirados pela Grécia. E Zalmóxis e Abáris são personagens ligadas à Tràcia, uma das zonas difusoras do xamanismo.

Platão não faz a apologia do xamanismo. Mas, ao que nos parece, há pelo menos, consideração por esta corrente. E podemos notar uma profunda analogia entre o xamanismo e a filosofia.

A analogia, a que fizemos referência, percorre praticamente todo o diálogo. Quase no final diz o jovem Cármides:


Creio mesmo, ó Sócrates, que bem preciso de encantações e, por mim, nada me impede de te ouvir recitá-la todos os dias, até que tu próprio digas que é suficiente. [21]


Para se compreender a passagem acabada de citar convém referir que o diálogo se debruça sobre a noção de prudência. Cármides mostra-se incapaz de a definir e é por isso que está disposto a frequentar Sócrates o tempo necessário para saber o que é a prudência para depois a possuir.

Após esta observação anotemos, ponto importante para o nosso trabalho, que Sócrates surge semelhante a um xamane, capaz de encantar e a filosofia aparece como algo capaz de produzir prodígios.

Como já dissemos Platão não faz a apologia do xamanismo mas a filosofia surge como análoga ao xamanismo. Pretende dar a conhecer e a adquirir a prudência, virtude difícil como mostra o diálogo.

E o filósofo é aquele capaz de preparar os espíritos para a receber.



3. Uma certa criança que existe em nós

Após a nossa digressão pelo Cármides vamos transitar para o diálogo Fédon, esse labirinto platónico como lhe chamou um autor [22].

Tal como fizemos anteriormente, não vamos tratar o Fédon na sua globalidade mas apenas examinar as passagens que consideramos relevantes para o presente trabalho.

Ao tratar-se da imortalidade da alma, a determinada altura diz Sócrates a Cebes:


Dá-me a ideia, contudo, que tanto tu como Símias estariam interessados em levar mais a fundo a argumentação ... levados, quem sabe, por um pavor todo infantil de que, ao sair a alma do corpo, logo a brisa a dissipe de verdade e a reduza a fumo - especialmente se calha alguém morrer, não em tempo de calma mas de rija ventania! [23].


A esta tirada bem humorada de Sócrates responde Cebes:


Faz, pois, de conta que somos uns medrosos, Sócrates, e trata de nos dar ânimo ... ou antes, que não somos nós os medrosos, e sim uma certa criança que existe talvez no íntimo de cada um de nós e a quem todas essas histórias apavoram. É a ela, pois, que deverás convencer a não recear a morte como se fosse um papão! [24].


As duas passagens que transcrevemos permitem-nos, desde já, fazer um comentário.

Há nestas linhas uma finura psicológica que, aliás, Platão demonstra noutros diálogos. A. Jeannière tem razão ao afirmar o interesse de Platão pela psicologia[25].É evidente que o filósofo não possuía no seu tempo os conhecimentos científicos que lhe permitissem ir mais longe neste campo.

Segundo o nosso parecer Platão dá-se conta da dificuldade dos argumentos racionais em tranquilizar o espírito humano, ou seja a racionalidade choca com o que há de mais profundo no espírito representado pelo inconsciente.

O filósofo apercebe-se dos terrores que se albergam no espírito, do lado irracional desse mesmo espírito que lhe faz lembrar uma eterna criança que tem a sua morada no homem, qualquer que seja a sua idade.

Platão não tem as bases teóricas para dar uma resposta dentro dos padrões da nossa época. Mas não deixa de ser pertinente a explicação que adiantou. E é pertinente, em boa parte, na medida que esclarece a filosofia platónica à luz dos quadros mentais e culturais da sua época.

Ora se existe uma criança medrosa em Cebes e seus companheiros, como proceder então? Segundo Sócrates, se tal acontece, é portanto necessário «fazer em cada dia encantamentos» [26] a essa criança até o pavor desaparecer.


E onde iremos nós, Sócrates, arranjar um virtuoso nesse tipo de encantamentos, se o facto é que nos vai deixar?» [27]


pergunta Cebes.

A resposta a esta pergunta é extremamente interessante como veremos já a seguir.

Se Sócrates vai deixar nesse dia os seus companheiros então, segundo o filósofo, é necessário procurar o encantador pela Hélade e pelos países bárbaros, valendo a pena fazer todos os esforços para o encontrar. Todavia, diz ainda Sócrates:


será bom que o procureis também entre vós: pois talvez não seja fácil descobrir quem, melhor do que vós, possa desempenhar esse papel. [28]


Vamo-nos deter um pouco sobre as últimas passagens que transcrevemos.

Para libertar as pessoas dos terrores que as assaltam é necessário um encantador. E é a partir daqui que se abre a parte mais interessante desta digressão a qual podemos sintetizar nos três pontos seguintes:

  1. encontrar um encantador vai ser difícil porque Sócrates morrerá nesse dia;
  2. se assim é, então procure-se um encantador por terras da Hélade e dos bárbaros;
  3. mas o melhor é procurar o encantador, segundo o aviso de Sócrates, em cada um daqueles que constituem o círculo dos seus discípulos.

Explanemos, agora, para uma melhor dilucidação do tema, cada um dos pontos que acabámos de apresentar.

Quanto ao primeiro ressalta de forma clara que Sócrates é identificado com um encantador, ou seja, no contexto do Fédon é visto como aquele que possui o poder de dissipar os terrores existentes no espírito humano.

No segundo, a morte de Sócrates, a ter lugar no dia em que decorre a conversa, vai implicar a procura daquele que o substitua na sua missão. Mas importante, igualmente neste ponto é a menção dos países bárbaros nos quais é possível encontrar encantadores.

Platão não desconhece que as artes do encantamento têm, uma das origens exactamente fora da Grécia, assim como não desconhece a sua importância na mentalidade dos seus compatriotas.

O último ponto que assinalámos, constitui em nossa opinião o mais relevante de toda esta digressão que ocorre no Fédon. Como vimos, para Sócrates será difícil encontrar melhores encantadores do que os seus próprios discípulos. Ora, qual é o significado desta atitude?

O filósofo surge como o encantador por excelência: ele é o herdeiro e o substituto, podemos dizê-lo, do xamane.

Nesta perspectiva a filosofia é agora o discurso do encantamento.

Reforçando o que já dissemos anteriormente, podemos ver que Platão não defendeu a necessidade da existência dos xamanes na medida em que a preparação do filósofo o levará a libertar-se, a si e aos outros dos terrores que os assaltam.

O Fédon nas passagens apresentadas coloca por um lado a analogia entre o filósofo e o xamane e por outro a consciência aguda do lado irracional do espírito com a sua resistência aos argumentos de ordem racional.



4. Filósofos e xamanes

Apresentaremos nesta última parte a conclusão geral do nosso trabalho. Ao longo das páginas anteriores, nas observações que fomos fazendo aos textos do Cármides e do Fédon, esboçamos, em boa parte, a conclusão que se vai seguir.

Tentaremos, com base no que foi exposto, fazer ressaltar, na medida do possível, o que pretendemos defender neste ensaio.

Primeiramente convirá atentar na distância que separa o Cármides do Fédon, a qual, com alguma probabilidade, pode ser estimada em cerca de 15 anos.

Durante este período, Platão aprofundou alguns temas, introduziu modificações salientes na sua filosofia e manteve, por vezes, a mesma linha nalgumas questões.

Quanto ao encantamento não há diferenças notáveis entre os dois diálogos, todavia será útil apontar duas que não são fundamentais:

  1. sob o ponto de vista formal no Cármides a encantação é apresentada através de um discurso fictício de Sócrates enquanto no Fédon a mesma personagem a apresenta como uma indicação ou exortação aos seus ouvintes;
  2. o Fédon apresenta a encantação com um alcance mais amplo do que o Cármides: no primeiro dissipa os terrores, no segundo produz uma virtude.

*


* *


Abordemos, agora, um problema mais amplo e que constitui o fulcro da nossa questão. A Academia teria constituído uma comunidade iniciática? Platão com a sua obra e o seu ensino oral visaria essencialmente um grupo fechado, com as características da escola pitagórica?

As perguntas são equivalentes e têm a sua razão de ser. Apoiados em passagens, algumas das quais examinadas por nós, alguns autores têm defendido a tese segundo a qual a Academia foi um círculo iniciático. [29]

Para respondermos às perguntas que colocamos temos de ir para além do Cármides e do Fédon numa apreciação global da actividade do filósofo.

A questão não é linear; aliás pouco há de linear em Platão.

No nosso entender, nem a obra escrita, nem o ensino oral do filósofo levam a concluir por uma actividade própria de um círculo de iniciados.

As alusões ao xamanismo, cuja grande base é fornecida pelo Cármides e pelo Fédon têm outro significado já esboçado em páginas anteriores deste trabalho.

O caminho trilhado por Platão neste campo é simultaneamente complexo e delicado.

Platão não faz a apologia do xamanismo no sentido de restaurar ou de considerar que o filósofo deva ser um xamane como o Abáris dos Hiperbóreos.

Por outro lado Platão não considera, em nossa opinião, o xamane como personagem sem interesse que deva ser arredado como um embusteiro.

Platão, segundo o nosso parecer, pretende mostrar a filosofia como tendo um papel tão prodigioso como o teve o xamanismo. Há, por assim dizer, a dessacralização do xamanismo surgindo a filosofia, pelo seu papel como a herdeira directa dessa corrente.

Os historiadores Cornford e Dodds puseram a tónica na longa caminhada da filosofia desde os seus inícios, mergulhados num saber antigo assim como nos elementos irracionais que acompanham o novo saber.

Segundo nos parece não há um ponto de ruptura entre a filosofia que surge com Tales de Mileto e sabedoria que lhe é anterior. Mas relevante é o facto de o antigo e novo saber percorrerem por vezes caminhos paralelos, outras cruzarem-se, quase sempre harmoniosamente.

As passagens dos dois diálogos que analisámos parecem indiciar que o filósofo grego, como defendeu Cornford, é um sucessor do xamane [30]. E por aquilo que já dissemos, poderemos afirmar que a marcha da Razão é acompanhada por elementos tradicionais. Tal é visível em Platão assim como o é nalguns pré-socráticos.

No Fédon o filósofo fala do palaios logos, ou seja, da antiga tradição [31].

De facto, em vários lugares da sua obra, Platão refere-se com respeito a personagens antigas ou modernas ligadas ao velho corpo de saber que ele vai utilizar ou adoptar [32]. E, em várias passagens, a utilização desse corpo de saber é clara, enquanto noutras, como as analisadas neste texto, ressalta uma profunda analogia.

Num caso como no outro, saliente-se, são as marcas da tradição que estão presentes na obra platónica.


*


* *


Regressemos ao tema mais restrito do encantamento e vejamos, em breve apontamento, uma concepção ligada a este domínio.

Na segunda metade do século V punha-se a tónica no poder da palavra e na sua capacidade de enfeitiçar os ouvintes.

É o começo do triunfo da Rétorica, do poder da palavra, a qual no dizer do sofista Górgias é capaz de acalmar uns sentimentos e de exacerbar outros [33]. A palavra era assim pharmakon, possivelmente no duplo sentido de remédio e de veneno [34].

A poesia, segundo a concepção de Górgias, é capaz de enfeitiçar o leitor ou o ouvinte. Neste ponto de vista a poesia contém uma certa magia a qual seduz aqueles que dela se aproximam [35].

Platão foi um adversário de Górgias, como é sabido. Mas não deixa de ser interessante notar-se, no tema que tratamos um certo paralelismo entre os dois pensadores. Há uma influência de Górgias, segundo pensamos, naquele que foi o seu grande adversário [36].

Estas considerações mostram-nos que o encantamento, a magia, por um lado constituem objecto de reflexão na segunda metade do século V e por outro apresentam Platão como não alheado do clima intelectual que lhe estava próximo.

Entremos, agora, na parte final desta conclusão.

Diremos que dos textos analisados ressalta, vamos repeti-lo uma vez mais, que o melhor encantador é o filósofo e assim a filosofia é o discurso do encantamento. Mas como vimos, igualmente, o filósofo não é um encantador à maneira tradicional.

A filosofia é a herdeira de uma sabedoria e de um comportamento, o qual teve um lugar proeminente noutras épocas, embora os seus prolongamentos, como é patente, cheguem até ao templo de Platão.

A analogia entre o xamane e o filósofo é que este pode desembaraçar do medo não só os outros como a ele próprio. A filosofia em Platão é sabedoria, e um dos seus objectivos é o de libertar aquele que trilha o caminho da filosofia dos vários terrores que o assaltam. Platão sabe que a existência dos medos mais diversos conduz à falta de liberdade.

Esta linha de pensamento, a qual foi destacada por nós, vai ter uma larga fortuna na Antiguidade. Não só em Aristóteles como nas escolas que lhe são posteriores, encontramos a concepção exposta cada vez com maior ênfase, é certo, da libertação do sábio, da sua importância, portanto, a qual constitui a estrada real para a felicidade [37].




Álvaro José dos Penedos



_____________________

[1] No poema surge a ninfa Circe protegida por animais ferozes que ela encantou. Deu um filtro a alguns companheiros de Ulisses e tocando-os com uma vara transformou-os em porcos.
Ulisses, protegido por uma planta dada por Hermes consegue que a feiticeira liberte os seus companheiros.

[2] Medeia envia os seus filhos com um presente para a sua rival, constituído por um diadema e um manto. Quando esta os coloca, vê-se envolvida por chamas que lhe provocam uma morte horrorosa.

[3] Para uma exposição sobre o xamanismo, veja-se E.R. Dodds, Os gregos e o irracional, Lisboa, Gradiva, 1988 (Trad. De Leonor Santos B. de Carvalho), pp.149-173.

[4]"O ponto importante a salientar é que em comunidades altamente civilizadas não se formam lendas desta natureza à volta de pessoas insignificantes ou de meros charlatães; ou, se se formam os charlatões não conquistam o respeito de homens como Aristóteles e Platão.» (F. M. Cornford, Principum Sapientiae, Lisboa, Gulbenkian, 1975, trad. M. Manuela Rocheta dos Santos, p. 175).

[5] «Há, todavia, um outro xamã grego ainda maior que, sem dúvida, tirou consequências teóricas e acreditava no renascimento. Estou a falar de Pitágoras» (Dodds, ob. cit., p. 158).

[6]«Se o acaso tivesse querido que o único testemunho de Parmenides a chegar às nossas mãos fosse os primeiros versos do seu poema, seria posto à margem como um mágico que se gabava de ter viajado no carro do Sol para além dos portões do Dia e da noite...» ( Cornford, ob. cit., p. 167).

[7] «...temos as próprias palavras de Empédocles, que afirma poder ensinar os seus alunos a parar os ventos e a ressuscitar os mortos e que ele é, ou pensa-se que seja, um deus tornado carne» (Dodds, ob. cit., p. 160).

[8] Dodds, ob. cit., pp. 223-242.

[9] Cármides, Coimbra, I.N.I.C., 1981. Trad., introdução e notas de Francisco de Oliveira, 155 B. Todas as citações deste diálogo são extraídas desta edição.

[10] Cármides, 155 E.

[11] Cármides, 156 D.

[12] Cármides, 156 C-E.

[13] Cármides, 157 A.

[14] Cármides, 157 A.

Aparece pela primeira vez no texto o termo prudência, tradução do grego sophrosyne, que constitui a opção de Francisco de Oliveira, a qual foi seguida por nós.

Estamos perante um exemplo da dificuldade em traduzir alguns termos gregos importantes. O autor aponta algumas traduções para a palavra sophrosyne: «prudência, sensatez, sabedoria, moderação, temperança» (ob. cit., p. 31; n. 1).

Para uma melhor aproximação do sentido de sophrosyne diz Francisco de Oliveira:



... na palavra estão presentes os seguintes elementos:

- saos ou sos «são, salvo, em boa saúde»;

- phron/phren «coração, espírito» como sedes de manifestações passionais e, sobretudo intelectuais;

- syne, sufixo que indica qualidade, e que aparece, no domínio moral, em virtudes como dikaiosyne «justiça».

Saos e phren aparecem no adjectivo sophron, qualitativo que, desde Homero, designa o «são de espírito», especialmente quando se referem ao comportamento de jovens e subalternos. No campo das relações do indivíduo com o corpo social o termo aproxima-se de aidos «vergonha, sentimento de respeito», designando depois, uma actuação digna de aprovação pública.

Assim, o conceito torna-se permeável e será condicionado pelas categorias da ética social e até religiosa, sofrendo eventuais infiltrações de acordo com o prisma das mentalidades das diversas camadas populacionais. (Ob. cit., p. 30).

[15] Quanto à cronologia dos diálogos de Platão veja-se W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, Cambridge University Press, vol. IV, 1977, pp. 39-54. Quanto à colocação do diálogo Protágoras veja-se o nosso livro O pensamento político de Platão, Publicações da Faculdade de Letras do Porto, 1977, p. 133.

[16] Veja-se Werner Jaeger, Paideia, Lisboa, Aster, s/d, (Trad. de Artur Parreira), pp. 939-995.

[17] «Thus the thesis of the mythical Thracian was thoroughly Greek, It is attributed to Hippocrates at Phraedrus 270 c» (Guthrie, ob. cit., p. 164, n. 2).

[18] Quanto ao tema da alma em Platão, veja-se A. Jeannière, Lire Platon, Paris, Aubier, 1990, pp. 217-237.

[19] A primeira viagem de Platão ao sul da Itália e à Sicília realizou-se em 389 ou 388 estando o filósofo de regresso a Atenas em 387. Cerca de 386 fundava a Academia.

Nessa viagem, o filósofo encontrou-se com os pitagóricos em Tarento, encetando uma longa amizade com Arquitas, figura de relevo na primeira metade do século IV.

A partir dessa época assiste-se a uma influência de pitagorismo em Platão: a imortalidade e a salvação da alma e a reminiscência contam-se entre essas influências.

O diálogo Górgias teria sido publicado, em nossa opinião, cerca de 386. Para esta opção veja-se a nossa ob. cit., pp. 145-147.

[20]Cármides, 158 B.

[21] Cármides, 176 B.

[22] R. Burger, The Phaedo. A platonic labyrinth, Yale University Press, New Haven and London, 1984.

[23] Fédon, Coimbra, Minerva, 1988. (Trad., introdução e notas de M. Teresa de Azevedo), 77 D-E. As citações deste diálogo são extraídas desta edição.

[24] Fédon, 77 E.

[25] «... il n’y a jamais en ni sociologie ni psychologie en Grèce, avant lui. Il est donc particulièrement intéressant d’examiner comment ces deux sciences humaines s’annoncent chez Platon». (A. Jeannière, ob. cit., p. 242).

[26] Fédon, 77 E.

[27] Fédon, 78 A.

[28] Fédon, 78 A.

[29] Francisco de Oliveira dá notícias desta interpretação. Veja-se ob. cit., p. 84, n. 19.

[30] Cornford, ob. cit., p. 174.

[31]


A ideia do corpo como prisão da alma, a necessidade de uma prática purificadora que a liberte e redima (assimilada por Sócrates à filosofia, ou seja, ao amor pela sabedoria), ainda a crença na metempsicose ou reencarnação das almas, são tópicos bem conhecidos das doutrinas mistéricas, e em especial do Orfismo e do Pitagorismo, que Sócrates provavelmente visa sob a designação genérica de palaios logos, a «antiga tradição. (M. Teresa Azevedo, ob. cit., p. 22).


[32] Por exemplo, no Ménon, 81 A-B, Sócrates ao introduzir a teoria da reminiscência diz o seguinte:


Os que dizem a verdade e o belo pertencem, por um lado, ao grupo dos sacerdotes e das sacerdotisas, a quem é cometido o cuidado de se dedicarem a prestar contas daquilo que estão encarregados. Por outro lado, dão também argumentos Pindaro e muitos outros poetas, divinos como são. (Trad. de Ernesto Rodrigues Gomes).


No banquete, 201 D, ao falar da sacerdotisa Diotima que transmitiu a Sócrates o discurso sobre Eros diz


que era deveras sabedora destes assuntos e de muitos outros. Foi ela quem, outrora oferecendo sacrifícios aos deuses, consegui protelar por dez anos a praga de peste que viria a assolar os atenienses. (Trad. de Pinharanda Gomes).


[33] Cfr. Górgias, Elogio de Helena, 8.

[34] Cfr. Górgias, Elogio de Helena, 14.

[35] Cfr. Górgias, Elogio de Helena, 10.

Para um melhor esclarecimento deste ponto citemos G. Romeyer-Dherhey:


Plus précisement Górgias, originaire de Grande-Grèce, subit l’influence pythagoricienne et l’on sait que cette secte étudia les effets de la musique: chaque mode musical exerce une action particulière sur l’âme, et possède par la une connotation éthique déterminée. Mais, par-delá la musique, le vocabulaire même employé par. Górgias pour dire l’action de la parole persuasive nous renvoie aux pratiques de la magie, qu’exerçait d’ailleurs déjà son maître Empédocle (...). La persuasion du discours procède par envoûtement des rites et des évocations magiques; le sophiste est sorcier, il possède le mot juste qui jadis faisait mouvoir les pierares et maintenant ouvre les coeurs, les fascine, les guérit». (Les Sophistes, Paris, PUF, 1985, p. 47).


[36] Aproveitamos esta ocasião para falarmos no discurso de Sócrates no Cármides. É um discurso fictício, carácter bem explícito no próprio diálogo. E se voltamos a este assunto é porque existe um procedimento com semelhanças com a sofística.

Há um discurso ilusório, próprio dos sofistas segundo Platão, que é apresentado pelo personagem Sócrates. Há, todavia, dois aspectos que convém mencionar.

É afirmado explicitamente que o discurso é fictício. O leitor do diálogo, neste ponto não fica com dúvidas e não é enganado.

Por outro lado, o discurso fictício proporciona uma digressão através de temas importantes para Platão (encantamento e prudência), digressão essa que se processa de um modo não enganador e não ilusório.
Não deixa de ser interessante notar que o convite para este tipo de discurso parte de Crítias, um discípulo dos sofistas. Mas anotemos, por fim, que o discurso fictício de Sócrates tem levado muitos comentadores a não considerarem como relevante, sob o ponto de vista filosófico, esse mesmo discurso. Como se pode ver não partilhamos desse ponto de vista.

[37] Aristóteles fala da superioridade da disciplina mais filosófica, a qual terá a superioridade sobre as outras. Do mesmo modo o filósofo está acima dos outros homens, não recebendo ordens daqueles que lhe são inferiores (Crf. Metafísica, A, 2).

Ao que nos parece, Aristóteles considera filósofo o homem mais livre na medida em que consagra a uma especulação superior. A posse da filosofia, deste modo, confere a liberdade àquele, que a possui.

Em Epicuro nota-se, claramente, o esforço para libertar o homem dos seus terrores. A sua Física, entre outros pontos, ao negar a possibilidade de interferência dos deuses no mundo tinha como intenção retirar a base teórica aos terrores.

O estoicismo preconiza a independência do sábio em relação a tudo que ele não pode controlar. Deste modo, afastam-se os medos e atinge-se a serenidade.

Os cépticos ao preconizarem a suspensão do juízo pretendiam afastar as tensões e chegar a um comportamento equilibrado.
Este breve apontamento pretende indicar uma das linhas de força da filosofia, a partir de Aristóteles, que se torna mais compreensiva ao levar em linha de conta os factores culturais e políticos da época em que surgiram, tarefa que não pode caber nesta nota.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A forma do bem


A forma do Bem descrita na República


Seria muito importante observar aqui sobre a relação entre os termos "Bem" e "Belo", os quais aparecem em algumas passagens dos Diálogos com conotações semelhantes, tais como no Lísis 216d assim como no Banquete. Aliás, neste último, o discurso de Diotima reverencia o Belo na mesma proporção em que Sócrates reverencia o Bem na República. Por esse motivo, ambos são aqui empregados como sinônimos, se bem que atentamos para que cada um deles esteja adequado em seu respectivo contexto. De acordo com Jaeger, o Belo e o Bem constituem "dois aspectos gêmeos de uma única realidade, que a linguagem corrente dos gregos funde numa unidade, ao designar a suprema arete do Homem como 'ser belo e bom' (καλοκαγαθία).[1]

Gláucon, ainda nas primeiras partes da República, já havia antecipado algumas espécies de bem, que, de acordo com o contexto, não se referem, de fato, ao Bem metafísico e, sim, ao bem no seu sentido cotidiano. Uma é aquela espécie que as pessoas desejam, não visando a uma outra consequência, senão àquele próprio Bem; por exemplo, a alegria e o prazer, os quais são buscados para o momento presente e são bons em si; a outra espécie é a que almejamos por si mesmo e também pelas suas consequências, tais como a sensatez, a vista e a saúde; a terceira é aquela espécie que, de fato, é benéfica apenas nas suas consequências, visto que a sua prática requer sacrifícios, por exemplo, a ginástica e a dieta que se usam no tratamento de doenças. Nós não o praticamos por amor a eles mesmos, mas às suas consequências[2].

É, entretanto, em 504d, no livro VI da República, que Sócrates começa o interessante tratado acerca do bem em sentido metafísico[3]. De início, ele e seus interlocutores já percebem a dificuldade do tema e a sua circularidade. Para muitos, o Bem é um prazer, e, para alguns, é o conhecimento, porém esses, quando interrogados sobre o que seja o conhecimento, acabam cometendo uma certa redundância porque dizem que é "o saber do bem[4]", o que é explicitamente ridículo. Por outro lado, os que o definem com o prazer se contradizem, porque concordam que há prazeres bons e maus; logo, isso significa que ele seja bom e mau ao mesmo tempo. E ainda uma outra dificuldade ocorre quando alguém censura outrem por não conhecer o bem e, no entanto, começa a falar como se aqueles que o ignoram já o conhecessem[5].

Ora, se o próprio Bem é a causa de todo o conhecimento, como poderia ele ser objeto do conhecimento? Apenas em dizer "conhecimento do bem" já o transformamos em objeto do conhecimento. De acordo com González, conhecimento do Bem, necessariamente, constitui-se em conhecimento do conhecimento.[6] Aqui há, evidentemente, ainda, uma circularidade, porém não viciosa, uma vez que se trata apenas da questão que envolve conhecer o Bem na condição de que o conhecimento em si seja goodlike.[7] Para González, a dificuldade em torno do Bem aparece na República da mesma forma como aparece nos demais Diálogos, diferindo, apenas, que na República aparece uma certa solução[8]. Conhecendo o Bem, nós também conhecemos o conhecimento, pois o conhecimento, com efeito, é goodlike. Na verdade, ao conhecer o Bem, nós conhecemos algo mais que o conhecimento. Nós conhecemos as formas por meio de idealização, e o Bem é o princípio que faz tal idealização possível[9]. Se quiséssemos dar um nome para este tipo de conhecimento que envolve o fato de conhecer o próprio Bem, não haveria outro nome melhor, diz Gonzáles, do que "conhecimento dialético"[10].

É bom lembrar que o Bem é uma forma, aliás, a mais elevada de todas. O panegírico que lhe é dirigido é, às vezes, tão requintado que, de fato, deixa transparecer uma espécie de divindade e, por pouco, até um monoteísmo. Tal como a forma do Bem, Deus, sendo bom, jamais pode ser a causa de todas as coisas, conforme crê o vulgo, mas é apenas o causador das coisas boas. Aquilo que é bom em momento algum será prejudicial, mas sempre bom; logo, o Bem nunca é a causa do mal.

E de igual modo, Deus, consoante às formas, é imutável, de modo que não se pode tornar pior nem melhor, pois já é perfeito. Essa é, aliás, a razão de Platão censurar as histórias nas quais Deus se metaformoseia[11]. Ele chega a ser mais elevado que a própria justiça, que, aliás, está contida no próprio título do Diálogo em questão. Chega a suplantar também a temperança, a prudência e a fortaleza, em síntese, é mais elevado que as próprias virtudes cardeais. O Bem, de acordo com Pietre, "designa Deus, termo supremo do conhecimento e garante a verdade desse conhecimento. Entretanto ele não designa um deus mitológico, astral, ou um objeto de culto determinado[12]".

Na concepção de Reale, ele é o Deus impessoal no contexto platônico[13]. Nickolas Pappas, entretanto, assegura que, para Platão, a forma do Bem não se trata de Deus e, sim, de uma Forma de "Formidade", isto é, uma Forma de formas. No vocabulário do livro V, uma forma é aquilo que é, porém a forma do Bem é aquela que está acima do Ser, o que quer dizer que ultrapassa todas as outras formas[14].

Enfim, a forma do Bem é o objeto último do conhecimento filosófico. Sem a visão dele no ápice da procura da verdade, a filosofia não poderia alcançar uma visão em conjunto. Qualquer ser vivente, por menor que seja, sempre procura o bem próprio. Neste caso, ele visa se reproduzir e perpetuar a vida. "Cada um de nós deseja o Bem, mas se limita a um bem estreito (o bem da saúde, das honras, o bem material). O bem da alma só pode elevar-se à contemplação do Bem. E tal objetivo constitui, para o filósofo, o fim último da ciência, isto é, a dialética"[15].

Quando Sócrates discursa, seus interlocutores estão assaz curiosos e ávidos por ouvi-lo sobre tão intrigante assunto. Sócrates hesita em prosseguir, mesmo sob a insistência de seu amigo Gláucon, exatamente a quem ele declara ser incapaz de acompanhá-lo, em decorrência da complexidade do tema. Adimanto não esconde a sua curiosidade: "Mas quanto a esse estudo mais elevado e ao objeto que lhe atribuis, julgas que alguém te largará sem te perguntar qual é[16]?"

Poderíamos possuir tudo, ou quase tudo, porém, se nos faltasse apenas o Bem, vantagem nenhuma teríamos, ou seja, nada ganharíamos se possuíssemos multidões de coisas, não sendo elas boas. De igual modo, poderíamos conhecer tudo quanto há, mas, se não conhecêssemos a forma do Bem, proveito nenhum teríamos[17]. Na sua descrição sobre o Bem, Sócrates deixa transparecer um discurso e um estilo, mais ou menos, esotérico. Na verdade, o calar socrático em relação à forma do Bem subentende-se uma espécie de esoterismo. Neste caso, estamos falando do silêncio dos filósofos pitagóricos, de quem Platão, com efeito, herdou o seu esoterismo[18].

Nas partes finais do livro VI e no início do VII, Sócrates esquiva-se da definição desse ser tão enigmático, ou seja, protela e, depois, então, resolve expor não sobre o Bem, mas sobre o Filho do Bem, o Sol. Eis que o Sol é o senhor da vida e do bem no mundo sensível, o causador das estações e dos anos etc. Caso alguém capacitado e entendido no assunto quisesse nos falar diretamente sobre este Bem, provavelmente ficaríamos com os olhos completamente ofuscados, ou talvez cegos, o que quer dizer que nada compreenderíamos. A essa explicação sobre o Filho do Bem Sócrates chama de juros, enquanto que o capital, o próprio Bem, fica assim adiado: "Receberei portanto este juro e este filho do Bem em si".[19]

Aprofundando a questão ainda mais, Sócrates admite, paradoxalmente, que o Bem é mesmo mais elevado que o próprio Ser[20]. Tudo isso é uma "transcendência tão divinal"[21], diz Gláucon, e insaciável que era por sabedoria, pede ao mestre para retornar ao assunto do Sol, mas é nesse momento que Sócrates inicia uma outra alegoria, a da Linha, e logo na sequência, a da caverna. Provavelmente, o maior paradoxo que daí decorre é a afirmação de que o Bem seja superior ao próprio Ser ou de que ambos não sejam o mesmo. Essa declaração é, sem dúvida, uma questão bastante difícil. Aqui, ao que parece, Platão realmente nega que a forma do Bem seja o Ser, do mesmo modo que nega que o próprio Sol seja a geração. Estamos tratando, sem dúvida, de uma exceção na opinião geral de Platão quanto à causação[22]. Tal declaração também pode significar o início de uma mística teológica. Seria exatamente esta passagem que mais tarde Plotino usaria para elevar o Bem ao princípio divino[23].

Considerando, ainda, o carácter ontológico da forma do Bem, seria importante citar aqui a análise de Francisco González em torno da leitura de três outros autores: Wieland, Ferber e Ebert. As três podem ser complementadas, bastando apenas acoplá-las, ou seja, recorrer a uma quando a outra não bastar. A leitura principal de Wieland é a de que o Bem não é um objeto de conhecimento teorético, mas de um conhecimento que governa o uso do conhecimento de qualquer objeto, ou seja, trata-se de um conhecimento prático. Para González, entretanto, o Bem em Platão não é meramente um princípio prático; é, antes, uma realidade objetiva. Essa insuficiência é contornada por González com a leitura de Ferber e Ebert, para quem as formas são ideais, isto é, não apenas são as coisas que são, mas as coisas que deveriam ser. As formas, a princípio, são normas e não apenas as ideias em sentido tradicional; são deonta e não apenas onta. As formas são, portanto, diferentes normas, porém o Bem é a forma que possibilita a existência e a intelegibilidade de uma norma. A concepção de Ebert, diz González, é de que a forma do Bem tem, antes, a função de excluir e não de determinar. A forma do Bem exclui as imperfeições e é responsável pela revelação dos conceitos que então funcionam como norma[24].

No Diálogo Hípias Maior, Platão também trata do Belo. Ali, o interlocutor de Sócrates, cujo nome leva o título do Diálogo, é indagado sobre o que seja o Belo[25]. Suas respostas, quase todas, consistem de exemplos por meio dos quais a opinião comum também compreende por viver eticamente bem e feliz. Sócrates, estulto como sempre, refuta todas as respostas do célebre sofista e procura deixar claro que o que lhe interessa é uma resposta, mais ou menos objetiva, que não se utilize de exemplos e na qual não haja nenhum indício de contradição. Quase todas as respostas de Hípias foram, com efeito, inteligentes, mas não conseguiram convencer um Sócrates assaz metafísico para o seu tempo. Hípias, naturalmente, irrita-se e acusa Sócrates de se ocupar com uma reflexão sem utilidade prática. Sócrates, por sua vez, não dá uma definição sobre o Belo, mas fica boquiaberto por perceber que uma pessoa tão sábia como Hípias e que vive ensinando por toda Hélade sobre coisas grandiosas não saiba dizer o que seja o belo, uma questão tão primordial.

Até aqui podemos perceber que, de certo modo, nenhuma resposta clara tivemos e que Platão, com muita habilidade, escapa e não define uma das suas grandes doutrinas[26] e, consequentemente, termina um bocado insuficiente. Se, na República, a aporia não aparece, a insuficiência ou, talvez, uma não determinada explicitação parece substituí-la. Guthrie, aliás, observa que a tão sublime ascensão da caverna, a qual culmina na contemplação da forma do Bem, na verdade, não foi percorrida nem mesmo por Sócrates. O que Platão faz em determinadas passagens da República é tentar explicar em termos filosóficos aquilo que na sua formação é, de fato, pitagórico. As caracterísitcas tão requintadas e absolutas atribuídas à forma do Bem, assim como a sua função soberana, têm, na verdade, um peso muito mais religioso do que racional[27]. Nesta altura, seria importante fazer referência a uma das soluções que os estudiosos do platonismo apresentam nos dias atuais, a qual se encontra nas chamadas "doutrinas não escritas".




A forma do Bem de acordo com as Doutrinas não Escritas[28]


Nesta seção, limitar-nos-emos apenas à questão da forma do Bem. Quanto aos detalhes da origem dessa escola e aos argumentos diversos que lhe dão suporte, não nos convém aqui desenvolvê-los. De acordo com a escola de Tübingen, o mistério que envolve a questão do Bem pode ser explicado e resolvido pelo conhecida doutrina esotérica[29] de Platão, também chamada de "doutrinas não escritas" (άγραφα δόγμαθα). Essa escola foi, de facto, quem resgatou e trabalhou essa teoria e, segundo os seus estudiosos, havia para Platão determinadas doutrinas que não convinham à escrita, mas unicamente à oralidade. Essa doutrina visava aos ouvintes da Academia que já se encontravam numa certa altura da iniciação filosófica. A escola de Tübingen[30] possui argumentos diversos na comprovação dessa interpretação. Ela fez, por assim dizer, exotérico ao que era esotérico. O próprio Aristóteles, no livro da Física, "diz-nos que esses ensinamentos que Platão comunicava só por meio da 'oralidade' eram chamados 'doutrinas não-escritas' (άγραφα δόγμαθα)"[31].

Duas passagens do Fedro e da Carta VII são tidas como fortes bases para argumentar que Platão não escreveu sobre determinadas coisas, visto serem por demais delicadas. De modo sucinto, eis os trechos desses Diálogos que soam como prova de que há um Platão esotérico:


De mim pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre semelhante matéria. Não é possível encontrar a expressão adequada para problemas dessa natureza, como acontece com outros conhecimentos [...]. Se me parece necessário deixá-las ao alcance do povo, que poderia haver de mais belo na vida do que divulgar doutrinas tão salutares, e esclarecer os homens sobre a natureza das coisas? Porém não acredito que de tais explicações advenha proveito para ninguém, com exceção de alguns poucos, que com indicações sumárias, sejam capazes de descobrir sozinhos a verdade [...]. Por isso mesmo, nenhuma pessoa de censo confiará seus pensamentos a tal veículo, principalmente se este for, como é o caso dos caracteres escritos[32].

Tu, nesse momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não investate um remédio para a memória, mas para a memoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação[33].


A intrigante questão da forma do Bem teria agora a sua essência revelada: o Uno. Na verdade, o próprio Ser deriva do Uno, o qual é a medida de todas as coisas[34]. Aliás, é muito interessante, e também curioso, que o Uno, para essa escola, seja o causador do Bem, do Ser e também da Díade, a qual seria a representante do mal. Se bem que as doutrinas não escritas "não nos diz expressamente que a Díade fosse considerada tal em todos os níveis. Com efeito, seria difícil explicar como, nos níveis inteligíveis, onde a Díade age como princípio de diferença de gradação e multiplicidade, ela possa ser causa do mal em sentido verdadeiro e próprio e, sobretudo, de que tipo de mal [...]. No nível do inteligível, a Díade é a causa do negativo somente em sentido paradigmático e abstrato[35]".

Nesse sentido metafísico, o Uno e a Díade, evidentemente, não significam, respectivamente, o número um e o número dois; eles são, por assim dizer, metamatemáticos. A Díade, antes de qualquer coisa, "é o princípio e raiz da multiplicidade dos seres [...] é uma espécie de 'matéria inteligível', ao mesmo nos níveis mais altos [...]. Além de Princípio de pluralidade horizontal, é também Princípio de gradação hierárquica do real[36]". O Uno, a despeito de sua superioridade sobre a Díade, ainda precisa dela para a sua atuação. Atuando sobre a Díade, ele delimita aquilo que é ilimitado.

Reale lembra que o próprio Aristóteles já havia percebido que as formas não se enquadram como explicação última[37]. No primeiro livro da Metafísica, no capítulo VI, ele aborda o pensamento do mestre. Discute o problema dos Primeiros Princípios, dos quais derivam as formas, e esboça a estrutura das realidades supra-sensíveis do contexto platônico:


Sendo as idéias as causas dos outros seres, julgou por isso que os seus elementos fossem os elementos de todos os seres; e como matéria, são princípios o grande e o pequeno, como forma é o uno, visto ser a partir deles, e pela sua participação no uno, que as idéias são números. Ora, que o uno seja substância, e não outra coisa, da qual se diz que é una, Platão afirma-o de acordo com os pitagóricos e, do mesmo modo, que os números sejam as causas da substância dos outros seres. Mas admitir em lugar do infinito concebido como uno, uma díada, e constituir o infinito com o grande e o pequeno, eis uma concepção que lhe é próprio, como ainda pôr os números fora dos sensíveis [...]. Se Platão separou assim o uno e os números do mundo sensível, contrariamente aos pitagóricos, e introduziu as idéias, foi por consideração das noções lógicas [...], por outro lado, se ele fez da díada uma segunda natureza, é porque os números, à exceção dos ímpares, dela facilmente derivam como matéria plástica [...]. Tal é, pois, a conclusão de Platão sobre as questões que indagamos. É evidentemente, pelo que precede, que ele somente se serviu de duas causas: da do 'que é' e da que é segundo a matéria, sendo as idéias a causa do que é para os sensíveis, e o uno para as idéias[38].


Considerando a pluralidade das formas, surge, com efeito, a necessidade da unificação e delimitação na esfera do inteligível[39]. Parece, de fato, não se tratar de tarefa simples a solução deste problema, visto ocorrer a existência de formas não somente para as substâncias, mas sim para todas as qualidades, como, por exemplo, o Belo e o Grande. Assim como a multiplicidade das coisas sensíveis se explica pelas formas existentes para cada uma, a pluralidade das formas também requer uma unificação. Desse modo, surge a necessidade de uma outra metafísica, mais profunda, mais distante ainda do sensível, a qual é constituída pelo Uno e pela Díade indefinida, que são os Primeiros Princípios. Desses, então, procedem as próprias formas. Da polaridade entre os Primeiros Princípios derivam os entes, que são uma espécie de síntese "que se manifesta como unidade-na-multiplicidade[40]".




A forma do Bem via o eros dialético


Se, na República, encontramos a dialética um tanto isenta da questão do mito, no Fedro, no Banquete e também no Fédon, vemo-la, entretanto, inteiramente revestida de uma habitual linguagem mítica. A dialética, enquanto Eros, é analisada no plano do sentimento, mas, na República, é vista na ótica do conhecimento[41]. Aliás, até mesmo na República a linguagem mítica não está ausente, se bem que esteja em proporção menor[42].

Veremos, agora, a concepção da forma do Bem e, consequentemente, a dialética no Fedro e no Banquete. Nesses dois Diálogos, os seus personagens estão preocupados com a questão do Amor e cuidam-se para não cometer sacrilégio contra uma divindade tão magnífica, louvando-a da melhor forma que podem.

No Fedro, Sócrates ouve o discurso de Lísias, narrado por Fedro e, logo depois, refuta-o. Este, um pouco irritado, obriga-o a fazer um outro discurso melhor do que aquele. Sócrates obedece-lhe e compõe, então, um outro discurso quase no mesmo estilo, isto é, sustentando que se devem fazer favores aos não-apaixonados em detrimento dos apaixonados, uma vez que estes estão sempre destituídos de razão. Porém, logo em seguida, encontramos Sócrates totalmente preocupado e arrependido pelo discurso que acabara de fazer. Disposto a se purificar a qualquer custo, prontifica-se a fazer um outro discurso, sério e comprometido com a verdade. Agora, no entanto, parte por uma outra perspectiva, inversa da dos dois discursos, isto é, do dele e do de Lísias; ele entra para o campo dos iniciados e pretende falar com a ajuda de Deus, ou seja, inspirado, pois, há pouco, Deus havia sido impedido de falar e ofendido por dois simples mortais. "Graças ao delírio, surgiram os ritos catárticos e iniciáticos [...]. Os deuses desejam a suprema ventura daqueles a quem foi concedida a graça da loucura[43]".

A linguagem platônica surpreende, pois não só acolhe na filosofia o mito em escala homérica, mas também em escala órfica, onde nem mesmo o delírio é detido. Eis uma interessante passagem do Fedro, que pode muito bem representar o aspecto místico de Platão:


[...] o que foi recentemente iniciado e que outrora teve o dom de contemplar muita coisa, esse, quando vislumbra um rosto divino ou qualquer outro objeto que traga a recordação da Beleza, ou um corpo formoso, esse experimenta primeiramente uma espécie de tremor, e depois, uma certa emoção, semelhante à de outrora. Nessa altura volta o olhar para o objeto belo que assim o despertou, e venera-o, como se de um Deus tratasse[44].


A beleza física tem a capacidade, quando for o caso, de despertar a dialética no amante virtuoso. O Amor é, obviamente, quem desperta uma paixão profunda no amante, o qual, dia e noite, com determinação, não se desvia do seu intento, a Beleza [45].

Embora o Amor seja o maior dos prazeres e o mais penetrante, ele atua com moderação e harmonia[46]. A temperança, que sempre deve ser um atributo do verdadeiro filósofo, também faz sua presença na questão do próprio amor. O verdadeiro amante é aquele que é apaixonado sempre, sem intermitência. Com efeito, o termo "paixão" conota o lado emocional e não o racional, porém, quando o fato se dá com um filósofo, ou com qualquer pessoa de bom senso, é de qualidade perene. O verdadeiro amante vê além da beleza física; vê a beleza da psique que habita dentro do corpo. Quando esse verdadeiro amante é um filósofo, quererá ensinar a filosofia ao seu amado[47]. Como consequência, tanto o amado como o amante se acharão em plena felicidade.

Se o amante for, de fato, profundamente virtuoso, conseguirá conquistar a alma inteira do seu amado, de forma que este é quem passará a contemplar a beleza daquele, mesmo que não seja belo de corpo. Esse exemplo está muito bem concretizado nas páginas finais do Banquete, onde Alcebíades, na condição de amado, termina por fascinar-se pela grandiosa virtude de Sócrates, o amante. Ali, o amado vê, além do corpo, uma tamanha beleza num homem aparentemente feio. A sua paixão é tão grande pelo amante que é preciso armar ciladas para poder conquistá-lo.

Sabei que nem a quem é belo tem ele a mínima consideração, antes despreza tanto quanto ninguém poderia imaginar, nem tampouco a quem é rico, nem a quem tenha qualquer outro título de honra, dos que são enaltecidos pelo grande número; todos esses bens ele julga que nada valem, e que nós nada somos [...]. Julgando porém que ele estava interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da fortuna, como se estivesse ao alcance, depois de aquiescer a Sócrates, ouvir tudo o que ele sabia [...].

Eu, então, depois do que vi e disse, e como flechas deixei escapar [...], vesti esta minha túnica, pois era inverno, estendi-me por sob o manto deste homem, e abraçado com estas duas mãos a este ser verdadeiramente divino e admirável fiquei deitado a noite toda [...]. Ora, não obstante tais esforços meus, tantos mais este homem cresceu e desprezou minha juventude, ludibriou-a, insultou-a e justamente naquilo em que eu pensava ser alguma coisa [...]; pois ficai sabendo, pelos deuses e pelas deusas, quando me levantei com Sócrates, foi após um sono em nada mais extraordinário do que seu eu tivesse dormido com meu pai ou um irmão mais velho[48].


Uma vez alcançada a maturidade dialética, o amor torna-se perfeito e belo e, portanto, é capaz de despertar a psique a contemplar aquele outro Belo. A ascensão rumo ao Belo é comparada com a capacidade de voar. As asas crescem de acordo com a contemplação correta de um belo físico:


Do mesmo modo que o sopro ou um som refletido por um corpo sólido e resistente também às emanações da Beleza, entrando pelos olhos, através dos quais se refletem, atingem a alma. Quando seguindo o caminho natural que leva à alma, aí chega, enche totalmente a alma e as aberturas das asas que, recebendo nova vitalidade, ganha nova plumagem e, por sua vez, a alma do amado fica também cheia de amor[49].


Os poetas e filósofos verdadeiros são não somente os que amam a psique, mas também os que concebem nela, isto é, os que concebem a virtude. è sobre isso que Diotima faz questão de frisar quando discorre sobre a sua dialética erótica. Vejamos como se dá essa ascensão rumo ao Belo Supremo:


Ora, os interessados devem começar se dirigindo aos belos corpos, amar a um só corpo e gerar belos discursos; depois devem entender que as belezas em todos os corpos são, na verdade, uma só e, em seguida, amar todos os corpos e não mais um só e, então, considerar mais precisoa a beleza da alma que a do corpo. Eis, com efeito, em que consiste proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir; em começar do que aqui é belo, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabem naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo [...]. Que pensamos então [...], se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio belo pudesse ele contemplar?[50].


Como se depreende da referida passagem, Platão traça o trajeto para alcançar aquela Beleza através de quatro escalões: "primeiramente, partir-se-á da beleza física; depois da beleza moral; em seguida passar-se-á à beleza intelectual; e finalmente atingir-se-á o Belo absoluto[51]". Diotima, sacerdotisa de Mantinéia (personagem fictícia de Platão), descreve-o não como belo, imortal, ou rico, aliás. Eros sequer é um deus. Por outro lado, ele também não é mortal, nem feio, pois a sua posição é intermediária entre as duas categorias: ele é um gênio (δαιμόνιον), um ser que intermedeia os homens com Deus (Θεός). Ele é o filho de Recurso com Pobreza, de onde é forçoso ser a sua natureza mutatória ou, talvez, por assim dizer, misteriosa, pois, pelo lado materno é um desgraçado e miserável, mas, pelo lado do pai é ávido de sabedoria. Situa-se, pois, exatamente entre a sabedoria e a ignorância.


Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio, pois já o é, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso [...]. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor do belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante[52].


Assim como o amor carnal promove a imortalidade do corpo, o amor dialético conduz a psique para o mundo das formas, as quais são eternas. O amor sexual leva à concepção, à parturição e à criação, o que concorre para a continuação da espécie, aliás, é desse modo que se pode dizer que os homens são imortais. O indivíduo isolado é mortal e desaparece, porém a espécie humana é contínua e imortal, sempre se renovando, sem nunca morrer[53]. A geração está, portanto, associada a Eros, o qual estimula os contrários para a cópula, da qual surge a concepção.

É possível, aqui, associar o discurso de Diotima[54] com o de Aristófanes, que se preocupou em pensar a gênese do desejo. O mito narrado por Aristófanes alude à arrogância dos primitivos humanos e ao castigo de Zeus, ou seja, o surgimento do sexo e do desejo. Foi, sem dúvida, a divisão quem provocou o surgimento do desejo. Uma vez dividido pelo Deus, o homem aspirou pela sua metade, pela unidade que lhe pertencia. Platão, então, procura lembrar que o amor tem sua origem na continuidade da espécie, tal como se dá com os animais[55]. "Provavelmente Platão via no amor a lei universal que anima todo o real, daí a função sintética e intermediária que reconhece nele[56]".

O desejo erótico revela que carecemos do verdadeiro ser e da perfeição. O amor nasce da ambigüidade do sensível, e o lança para o supra-sensível, com quem ele possui certa semelhança. Mas, normalmente, dá-se o contrário e, então, os homens são levados ao despudor. "Nascido para espiritualizar a matéria, o desejo materializa o espírito[57]". Com efeito, todos os homens, sem exceção, aspiram a essa tão maravilhosa condição; entretanto, qual seria a razão de muitos homens não amarem, ou seja, não quererem ser felizes? Platão mesmo dá a resposta: o amor possui, com efeito, vários aspectos, e cada um deles, normalmente, recebe um nome, mas as pessoas se utilizam do nome genérico, ou seja, do nome que cabe a todos os seus diversos aspectos[58].

Em geral, todo o desejo daquilo que é bom, assim como o de ser feliz, constitui-se no supremo amor para todo homem. Entretanto, "enquanto uns, porque se voltam para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que amam nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo".[59]

Num determinado trecho, conforme foi visto, Platão diz que o amante ama o que é belo, mas depois esclarece dizendo que o amor, em primeiro plano, não é o amor do belo, mas da geração e da parturição no belo, com o intuito de ter sempre consigo o belo. O texto, no entanto, é bem claro ao mostrar que o amor ama o belo e a geração simultaneamente: "E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É, de fato, forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor"[60]. É típica da natureza, até entre os brutos, que o mortal procure, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal[61].

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[1] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 745. Cf. REALE, Giovani. A História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, v. 2, p. 308.

[2] Rep. II 357 a-d.

[3] Para Jaeger, o conhecimento do Bem não é uma operação de inteligência, e, sim, a expressão consciente do homem interior. JAEGER, Werner, op. cit., p. 565.

[4] Rep. VI 505c.

[5] Rep. VI 505 b-c.

[6] GONZÁLEZ, Francisco J. Dialectic and Dialogue: Plato's practice of philosophical inquiry. Evanston: Northwestern University, 1998, p. 217.

[7] Ibid., p. 218.

[8] Eis como González formula uma questão para o problema: "Knowledge is not identical with the good, but neither can it have the good as a mere object external to itself. What exactly, then, is the nature of the relation between knowledge and the good in what is called 'knowledge of the good'? Socrates provides a clear answer: the relation is best described by saying that knowledge is 'goodlike' (άγαθοείδή, 509 a)". Ibid., p. 217-218.

[9] Ibid., p. 218.

[10] Ibid., p. 218.

[11] Rep. III 381c.

[12] PIETTRE, Bernard. A República, livro VII. 2. ed. Brasília: UnB, 1996, p. 31.

[13] REALLE, op. cit., p.150.

[14] PAPPAS, Nickolas. Plato and the Republic. London: Routledge, 1995, pp. 137-138.

[15] PIETTRE, op. cit., pp. 30-31.

[16] Rep. VI 504e.

[17] Ibid., VI 505 a-b.

[18] GUTHRIE, W.K.C., A history of Greek Philosophy. Plato the man and his dialogues earlier period. Cambridge: Cambridge University Press, v. IV, 1995, pp. 35, 526.

[19] Rep. VI 507a.

[20] Ibid., VI 409 b-c.

[21] Ibid., 509c.

[22] "Contrary to the general rule, he is saying, from the fact that the Form of Good is the cause of the being of others Forms it doesn't follow that the Form of Good is the Form of Being". WHITE, Nicholas P. A Companion to Plato's Republic. Indianopolis: Hackett, 1984, pp. 180-181.

[23] PAPPAS, op. cit., p. 137.

[24] GONZÁLEZ, op. cit., pp. 213-215.

[25] A música, como uma maneira excelente de se educar, culmina exatamente no seguinte ponto: no amor ao Belo. Rep. III 403c.

[26] GUTHRIE, op. cit., p. 526.

[27] Idem: pp. 510-512.

[28] Convém lembrar que nem todos aceitam esta teoria com muita facilidade. Para Nicholas White, por exemplo, não apenas a República e nem todos os diálogos, não alcançam uma explicação considerável sobre a forma do Bem. WHITE, op. cit., p. 30.

[29] De acordo com Cirne-Lima, a Grande Síntese, que falta nos diálogos escritos, foi transmitida por meio oral. O beco sem saída, a indefinição do jogo dos opostos, a dita άπορία, muito comumente atribuída aos Diálogos, explica-se por esta causa, isto é, pela preferência de Platão em não exarar tudo o que sabia. CIRNE-LIMA, Carlos, Dialética para Principiantes. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, pp. 37-41.

[30] Dois grandes nomes dessa escola e, simultaneamente seus pioneiros são Krämer e Gaiser. REALE, op. cit., p. 11.

[31] Ibid., p. 20.

[32] Cartas VII 341c-e; 343a.

[33] Fedro 274e-275 a-b.

[34] REALE, op. cit., pp. 107-108.

[35] Ibid., p. 140.

[36] Ibid., p. 86-87.

[37] Ibid., p. 84.

[38] Met. A 6 988 a 9-17.

[39] REALE, op. cit., p. 84.

[40] Ibid., p. 84-85, 88.

[41] MANON, Simone. Platão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 146.

[42] A República contém, sem dúvida, uma fala mítica, sobretudo, no livro X o qual aborda o tormento dos injustos no além. "His religious terminology in the Phaedo is Bacchic, Orphic, and Pythagorean all at once (...). The Republic does not use the vocabulary of ecstatic ritual as explicitly as the Phaedo, but the general framework is still present in Plato's mind". MORGAN, Michael L. "Plato and Greek Religion", in KRAUT, Michel (Org.) The Cambridge companion to Plato. Cambridge: Cambridge University, 1997, pp. 238-239.

[43] Fedro 244d; 245b-c.

[44] Ibid. 251 a.

[45] Ibid. 251 d-e.

[46] Rep. III 403 a-b.

[47] Fedro 252 e.

[48] Banq. 216 d-e; 217 a; 219 b-d.

[49] Fedro, 255 c-d.

[50] Banq., 211 c-e.

[51] FREIRE, Antônio. O Pensamento de Platão. Braga: Livraria Braga, 1967, p. 68.

[52] Banq. 204 a-b.

[53] Ibid., 207 c-d.

[54] Na verdade, "todo o discurso de Diotima é uma análise segura da natureza socrática". JAEGER, op. cit., p. 747.

[55] MANON, op. cit., pp. 140-142.

[56] Ibid., pp. 142-143.

[57] Ibid., pp. 144-145.

[58] Banq. 205 a-b.

[59] Ibid., 205d.

[60] Ibid. 207a.

[61] Ibid. 207d.




Lutecildo Fanticelli



"A forma do bem" foi extraído de Fanticelli, Lutecildo, Questões Essenciais da Dialética em Platão, Passo Fundo, Méritos, 2003, pp. 115-139.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.