quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Apontamentos de Filosofia Antiga


Nota prévia: este texto destina-se essencialmente aos estudantes que se iniciam no estudo da Filosofia Antiga.


Terceira Parte


Sofistas, Sócrates e Socráticos menores


1. A segunda metade do séc. V a. c.


1.1. O quadro histórico

A segunda metade do séc. V. a. C. é importante sob vários aspectos, entre os quais o filosófico.

Vamo-nos deter, quase exclusivamente, sobre Atenas, por razões perceptíveis ao longo desta exposição.

Para uma melhor compreensão dos movimentos filosóficos tracemos, primeiramente, as linhas gerais do quadro político.

Em meados do séc. V. a. C., o estratego Péricles apresenta-se como o símbolo de um determinado regime - o democrático; e o círculo que constituiu ao seu redor foi bem representativo do ambiente cultural que, então, se respirava. Plutarco, na sua Vida de Péricles, dá-nos algumas indicações preciosas sobre a constituição de tal círculo.

Assim, sabe-se que o sofista Protágoras foi um dos íntimos do grande político (55); e pode-se acrescentar ter sido ele quem elaborou a constituição para a colónia de Túrio, construída sobre a arrasada cidade de Síbaris. Zenão de Eleia, o célebre discípulo de Parménides, gozou, também, da mesma audiência.

"A sua maneira era discutir com toda a gente", diz Plutarco, "empregar os argumentos mais subtis e levar os adversários a não saberem que responder-lhe" (4, Trad. Lobo Vilela).

É possível que tanto o sofista como o eleata tivessem preparado Péricles para os grandes embates na assembleia, onde o discurso bem como a arte de disputar constituíam os grandes temas para a vitória política.

Plutarco, que continuamos a seguir, não esconde em vários pontos da sua obra a admiração por Anaxágoras:


"o amigo íntimo de Péricles...aquele, enfim, que lhe inspirou a grandeza da alma que o distinguia, a dignidade que ressaltava de toda a sua conduta, foi Anaxágoras de Clazómenas..." (5, Trad. Lobo Vilela).


Estas figuras que rodearam Péricles, sem falarmos de outras que foram, também, importantes indiciam, já, o quadro intelectual da Atenas na segunda metade do séc. V.

Abordando, agora, o aspecto político, o nosso melhor guia é o historiador Tucídides, que foi um chefe militar ateniense, no conflito que opôs Atenas e Esparta e também um pensador político que, na sua obra Guerra do Peloponeso, embora com moderação, não esconde a sua simpatia pelo dirigente ateniense.

Em texto que ficou célebre, o historiador apresenta uma oração fúnebre, pronunciada pelo estratego, em que este aproveita para elogiar o regime sob o qual vivia Atenas (II, 35-46).

É um elogio à democracia, cujo regime é caracterizado pela possibilidade de todos os cidadãos, qualquer que seja a sua posição económica, ascenderem aos mais altos cargos da polis.

Mas impõe-se fazer algumas considerações quanto à sociedade ateniense e à democracia no tempo de Péricles, para determinar o que há de novo na vida da Cidade, assim como o que se deve entender por democracia, enquanto Péricles esteve à frente dos destinos de Atenas.

Sobre o primeiro ponto, parece não haver dúvida em assinalar-se uma transformação que, embora ainda não radical, contrastava com a de Atenas de algumas décadas atrás.

Os grupos familiares que agregavam uma série de partidários cedem o lugar a grupos mais vastos, que se diferenciam dos anteriores pelo maior número de membros e por um esboço de ideologia que os vai informando.

Embora encaremos, cautelosamente, toda e qualquer comparação, permitimo-nos afirmar que, cerca de 450-440 surgem as facções políticas, aproximadamente, como hoje as entendemos. Agrupamentos, como dissemos, mais vastos (em que o núcleo já não era o clã familiar), com uma doutrina já assente e cujo objectivo era a conquista do poder e a instauração de um determinado tipo de governo.

Assim, frente a frente, encontravam-se a facção democrática e a aristocrática. A primeira agrupava, essencialmente, os cidadãos, cujo privilégio não era o sangue, ou seja, aqueles que pertenciam à classe popular e à burguesia de riqueza grande ou mediana, alcançada através do comércio e da indústria, aos quais se juntaram alguns nobres. A segunda era constituída pela nobreza, que não queria perder os seus antigos privilégios, a qual atraiu, também, a si alguns ricos burgueses. Tal facção visava, fundamentalmente, constituir um governo oligárquico.

Devemos fazer algumas considerações, para uma melhor compreensão, da democracia da qual Péricles era o expoente máximo. Em primeiro lugar, o estratego era um Alcmeónida, isto é, um membro de uma das famílias mais poderosas de Atenas que, ao longo de gerações, lutava pela conquista do poder. O próprio Tucídides, simpatizante deste político, não se furta a dizer que o governo de Atenas, no seu tempo, era essencialmente o governo de um homem só, ou seja, que, sob a capa da democracia, Péricles tinha, praticamente, todos os poderes, restando ao demos aplaudi-lo.

Falemos, agora, um pouco sobre algumas características da democracia ateniense.

Em primeiro lugar, o corpo de cidadãos, aqueles que tinham o direito de votar e de ser eleitos, era constituído apenas por uma parte da população: talvez 10 por cento. Havia, assim, uma limitação desta democracia, pois, nem todos tinham a capacidade política.

Em segundo, diremos, agora, que esta democracia era directa. A Assembleia Popular, constituída por todos os cidadãos, detinha o poder político e a condução dos negócios públicos.

Em terceiro lugar, dever-se-á anotar que o regime democrático ateniense, ao longo do tempo criou mecanismos para controlar (na medida do possível) os aspectos demagógicos. Anotar, ainda, que a democracia em Atenas, durante a sua longa existência, se foi aperfeiçoando e, não obstante alguns acidentes de percurso, serviu os interesses da Cidade.

*

Os acontecimentos ocorridos em 411, em plena Guerra do Peloponeso, são elucidativos de como algo profundo ocorria na vida ateniense. Nesse ano, os oligarcas tomaram o poder através de uma revolta, constituindo o chamado governo dos Quatrocentos, o que mostra a dificuldade que a nobreza tinha em tomar um lugar de relevo na condução da vida política, sem recurso à força.

Esse facto mostrava, também, como se iam extremando, cada vez mais, os campos ideológicos, manifestando-se uma consciência muito aguda dos conteúdos doutrinários das facções em presença.

Mas, o governo dos Quatrocentos, cujo teórico seria Antifonte, contou com a firme oposição de uma parte da frota e do exército que, na altura, estacionava na ilha de Samos, o que se poderá interpretar como a expressão de um sentimento profundamente democrático do povo ateniense.

*

Falar da segunda metade do século V, sob o ponto de vista histórico conduz-nos ao grande conflito conhecido por Guerra do Peloponeso. Esta guerra ocupa, praticamente, as três últimas décadas do século V.

O conflito teve a sua origem na pretensão de hegemonia manifestada pelas duas cidades-estados mais poderosas da Grécia - Atenas e Esparta; não só factores económicos mas também ideológicos estiveram em jogo.

Atenas tinha constituído um império, essencialmente marítimo, cujo grande obreiro tinha sido o próprio Péricles.

O poderio ateniense centrava-se, sobretudo, no quadrante oriental do mundo grego e que procurava, já, estender-se para as regiões do Ocidente. Plutarco, na Vida de Péricles diz que este


"tinha o cuidado de refrear as loucas pretensões dos Atenienses... começa já, até, a acender-se no coração da maior parte deles este fatal e desgraçado desejo de subjugar a Sicília, desejo que os oradores do partido de Alcibíades inflamaram depois com tanta violência" (33, Trad. Lobo Vilela).


Era este império, vasto em termos gregos, que fornecia as matérias-primas de que Atenas necessitava, enquanto esta dava protecção militar às suas aliadas. Os impostos recebidos por Atenas, assim como os lugares de funcionários e soldados que constituíam a estrutura ateniense, faziam com que a Cidade da Ática pudesse viver desafogadamente, ao mesmo tempo que uma parte dos seus habitantes tinha uma ocupação que lhes dava, pelo menos, para viver razoavelmente.

Compreende-se, assim, que a facção democrática se encontre empenhada na defesa dos resultados já conseguidos, obtendo, por isso, um grande apoio popular.

Por razões ideológicas, o movimento aristocrático era pró-espartano, sendo, portanto, contrário a uma guerra que opusesse a sua Cidade a Esparta e parece, também, que não estaria interessado na manutenção de um império.

As cidades-estados, ameaçadas por Atenas, juntaram-se a Esparta e, a guerra pela supremacia prolongou-se durante vinte e oito anos, com excessos de ambas as partes.

As devastações realizadas pelo exército espartano na Ática, assim como as pilhagens no litoral do Peloponeso pela frota ateniense, constituíram marcos de uma violência que transbordou desses limites geográficos. Relembremos, apenas, o massacre efectuado pelos atenienses na pequena ilha de Melos, em que os homens foram mortos e as mulheres e as crianças feitas escravas.

Quanto a guerra já não favorecia os atenienses, estes entraram numa espécie de demência.

Os próprios estrategos, embora vencedores junto das ilhas Arginusas, não podendo recolher os corpos dos seus compatriotas, devido a uma tempestade, foram condenados em bloco - o que era contra a lei.

Mas a batalha de Egospótamo pôs fim à guerra do Peloponeso devido à destruição da esquadra ateniense, o que levou à celebração da paz em condições, talvez, não muito duras para a Cidade que tinha realizado várias violências, a coberto de razões políticas e em nome da justiça.

*

Em 404, Atenas obteve a paz a troco da destruição das suas muralhas e da perda da frota e do império. A facção democrática, sob a pressão interna e externa, não se conseguiu manter e os oligarcos constituíram um governo, apoiado pelos espartanos. O novo governo cedo conheceu a cisão, pois Crítias era partidário de um regime de força, enquanto Terâmenes, representante dos moderados, pretendia uma nova constituição.

É provável que esta cisão tenha resultado do facto de Terâmenes ver, com clareza, que o apoio ao governo ia diminuindo devido às perseguições e extorsões que, então, se praticavam. Terâmenes pagou a sua moderação com a morte.

Este governo, que ficou conhecido por governo dos Trinta Tiranos levou os democratas a refugiarem-se em Tebas (onde se encontrava Trasíbulo, que já em 411 se tinha oposto ao regime dos Quatrocentos), e em Mégara, que, também, abriu as suas portas aos refugiados; a estes exilados juntaram-se, depois, os partidários de Terâmenes.

Com um corpo de cidadãos reduzidos a três mil, e uma onda de terror que, segundo Aristóteles, levou à morte cerca de mil e quinhentas pessoas, o governo oligárquico tornou-se odioso.

Em 403, Trasíbulo, reunindo os exilados, conquistou, primeiramente, o Pireu, entrando, em seguida, na própria Atenas.

Sem grande oposição das forças espartanas, o regime democrático foi restaurado, tendo os novos governantes usado de uma moderação notável em relação aos seus adversários.




1.2. O quadro Cultural

Depois de termos traçado o quadro histórico, nas suas linhas gerais, da segunda metade do século V, é altura de indicarmos os grandes momentos sob o ponto de vista cultural.

Ocupando lugar de relevo no movimento filosófico dos meados do século V, situava-se Anaxágoras de Clazómenas que, como já disse, pertenceu ao círculo de Péricles. Ele foi, juntamente com Demócrito, o último grande pensador do chamado período pré-socrático.

A sua presença em Atenas é indício muito provável do desejo de Péricles em ver desenvolver-se, na Cidade, a especulação filosófica, a qual, presente em zonas da colonização grega, tinha estado arredada de Atenas.

A estadia do ilustre filósofo tem, pois, um elevado significado cultural, na medida em que a Filosofia mudava de quadrante geográfico, passando da Grande Grécia para a Ática.

Com muita probabilidade, devido à sua presença no círculo de Péricles, o filósofo foi acusado de impiedade, crime considerado muito grave em Atenas (a acusação de impiedade, neste caso, devia esconder uma perseguição política).

Acusado de tal crime, Anaxágoras retirou-se para Lâmpsaco.

Os mais recentes pensadores, da linha pré-socrática, são Hípon de Samos, que restaura o ponto de vista de Tales, Diógenes de Apolónia, possivelmente o de maior valor, que regressa a Anaximenes, e Arquelau, discípulo de Anaxágoras, que tentou conciliar o pensamento deste último com o do milésio Anaximenes.

Todos eles foram defensores de um eclectismo em que as teorias dos pensadores de Mileto foram reelaboradas com a ajuda de conhecimentos de ordem científica especializada, sobretudo médica, conhecimentos esses que tiveram um surto de grande desenvolvimento pelos meados do século V.

Mas este eclectismo não chegou a impor-se e se a ciência conhecia o apogeu, a filosofia teve de fazer uma viragem, devida como veremos, em grande parte, ao movimento sofístico.

Se a Filosofia tinha nascido em Mileto, é Atenas que vai assistir à aurora de um novo impulso filosófico.

*

A segunda metade do século V foi fértil em transformações políticas, sociais e culturais.

É a altura em que a ciência e a técnica ganham foros de cidadania, havendo alguns dos seus cultores cujos nomes vamos recordar.

Em primeiro lugar, citemos os matemáticos Enópides e Hipócrates de Quio, que prolongaram um domínio cultivado pela escola pitagórica, a qual alcançou êxitos assinaláveis até o século IV a. C., e cujos representantes mais famosos foram conhecidos pelo próprio Platão, sobretudo quando este fez a primeira viagem à Grande Grécia.

Famoso, também, o astrónomo Méton, que lançou ombros à reforma do calendário, pertencendo a essa plêiade de cientistas que a Grécia via surgir. Embora a técnica não tivesse ganho importância, Plutarco (V.P., 23) assinala o nome do engenheiro Artemon que acompanhou Péricles no cerco de Samos e fora o inventor de algumas máquinas de guerra utilizadas nessa altura.

*

O grande acontecimento científico, em nossa opinião, foi levado a cabo pela Medicina, cujo centro principal foi a Escola de Cos dirigida pelo célebre Hipócrates. O Corpus Hipocraticum, que chegou até os nossos dias, não permite, todavia, distinguir o que pertence ao mestre e aos seus discípulos.

Werner Jaeger teve entre outros, evidentemente, o grande mérito de, na sua Paideia, aprofundar o significado e mostrar o impacto que a ciência médica teve no seu tempo. São do célebre historiador estas palavras, bem elucidativas:


"Ainda que não tivesse chegado até nós nada da antiga literatura médica dos Gregos, seriam suficientes os juízos laudatórios de Platão sobre os médicos e a sua arte, para concluirmos que o final do século V e o IV a. C. representaram, na história da profissão médica, momento culminante do seu contributo social e espiritual." (Trad. Artur Parreira)


E, na linha do que pretendemos, essencialmente, estudar, outra passagem do mesmo historiador parece-nos, também, da máxima importância:


"É perfeitamente lógico que, ao fundar a sua ciência ético-política, Platão não começasse por se apoiar na forma matemática do saber nem da filosofia específica da natureza, mas, como nos diz no Górgias e em muitos lugares, tomasse antes, por modelo, a arte médica." (Trad. Artur Parreira).


Esbocemos, porém, as grandes linhas da medicina grega, para, com mais clareza, vermos qual o lugar que ela ocupa na cultura dos séculos V e IV a. C.. Em vários escritos do Corpo Hipocrático ressalta a influência que a filosofia pré-socrática exerceu sobre alguns médicos, pois, as doenças são estudadas numa perspectiva ampla, em que o Homem não pode ser desligado da própria natureza.

Tal significa que o conceito de physis é transposto da reflexão filosófica para o campo da ciência médica. Para ilustrarmos a voga deste conceito bastará dizer que, num dos escritos hipocráticos, se aconselha o médico que se dirija a qualquer cidade, para estudar, em primeiro lugar, a situação desta, as águas, os ventos, portanto o que era matéria da chamada meteorologia; só de posse destas informações ele estaria habilitado a debruçar-se sobre o doente.

O conceito de natureza, de physis, ainda é tomado no sentido em que os milésios o empregaram.

Se os escritos um pouco mais antigos mostram a influência da chamada filosofia da natureza, todavia a medicina dá um passo em frente e será esta que, em meados do século V, influencia os próprios pensadores como Anaxágoras, Diógenes e Hípon, sendo este último, também, um médico.

Surgem os estudos sobre os alimentos, ou seja, a dietética, assim como as obras sobre a ginástica. Tais conhecimentos são tendentes a que o Homem atinja um equilíbrio, pois o universo tem uma ordem harmoniosa, e o Homem, inserido neste mesmo universo, deve constituir, também, uma harmonia.

Dos conceitos mais importantes que vão surgir é, sem dúvida, o da natureza humana que mais interessa, aqui, focar. Do sentido lato de natureza passa-se, agora, para o sentido mais restrito da natureza que é própria do Homem, preocupando-se a ciência médica com a dimensão eminentemente antropológica (como é natural numa ciência deste tipo).

Assim, alguns escritos do Corpo Hipocrático mostram diferenças em relação às doutrinas dos pré-socráticos. E será essa noção que, por sua vez, irá influenciar o próprio movimento sofístico que, segundo Robin, foi sobretudo permeável ao Acerca da Arte, um dos tratados da colecção hipocrática.

A autonomia da ciência médica está bem expressa na obra intitulada Da Medicina Antiga, cujo autor considera que esta ciência não necessita de uma nova fundamentação, e aponta para um campo mais restrito, para um certo empirismo, em que o Homem fosse estudado, não já nas suas relações com a Natureza, mas em si próprio.




2. Os sofistas



2.1. Preliminares

Um dos grandes movimentos culturais dos meados do século V foi, sem dúvida, a sofística, com uma repercussão que ultrapassa esse século, penetrando no seguinte, sendo pois contemporâneo do próprio Platão.

Protágoras, Górgias, Pródico e Hípias (seguindo a ordem cronológica) são os representantes máximos desta corrente sendo, ao mesmo tempo, os seus iniciadores. A actividade destes quatro sofistas decorre mais ou menos entre 450 e princípios do século IV. Surge ainda, uma geração mais jovem da qual destacamos: Trasímaco, Pólo, Xeníades, Licofron, Alcidamas.

A acção destes homens denegrida durante muito tempo é, nos nossos dias, e de uma maneira geral, encarada de forma positiva. L. Robin, em La Pensée Grecque, ainda escreveu estas linhas:


"Quaisquer que tivessem sido as fraquezas e as taras profundas, a obra dos sofistas, do século V, não deve ser depreciada. Sem dúvida, o seu método é formal, a maioria das vezes vazio de pensamento pessoal e de sinceridade" (p. 177).


Estas reticências não são compartilhadas por Werner Jaeger que, sobre este movimento, afirma o seguinte:


"Do ponto de vista histórico, a sofística é um fenómeno tão importante como Sócrates ou Platão. Mais, não é possível concebê-los sem ela" (Paideia, p.316, Trad. Artur Parreira).


A opinião deste historiador é partilhada, entre outros, por Dupréel e Guthrie tendo este último, na minha opinião, efectuado um dos estudos mais profundos sobre os sofistas.

Após estas linhas introdutórias convém salientar que o sofista era um mestre do saber (sábio, filósofo e sofista foram termos equivalentes), um profissional do ensino, como hoje diríamos, e a sua acção só se compreende pelas mutações cada vez mais rápidas que a sociedade grega sofria.

A partir dos meados do século V, como já disse, a presença das facções políticas, a luta ideológica, transposta, por vezes, para o conflito bélico, fazia com que a carreira política fosse, simultaneamente, mais difícil e mais aliciante.

Sobretudo a juventude, que queria tomar parte na gestão da coisa pública, tinha de ter uma preparação cuidadosa, pois, era perante as assembleias, nas quais estavam presentes os cidadãos, que se travava a luta pelo poder.

Os sofistas respondiam a essa necessidade assim como àquela, sobretudo na classe mais elevada, que consistia na curiosidade pela análise literária e pelos temas filosóficos e científicos. O fenómeno sofístico tem de ser compreendido, portanto, no enquadramento histórico e cultural, o qual, a ser desconhecido, tornaria ininteligível o aparecimento e a voga destes profissionais do saber.

Até que ponto os sofistas desenharam um movimento com interesse para a História da Filosofia constitui um tema controverso. Referindo-se ao aparecimento do subjectivismo e do relativismo filosófico, W. Jaeger defende a seguinte posição:


"O esboço duma teoria por parte de Protágoras não justifica tais generalizações, e é um erro evidente de perspectiva histórica pôr os mestres da areté ao lado dos pensadores do estilo de Anaximandro, Parménides ou Heraclito." (Paideia. Trad. Artur Parreira)


A posição de Werner Jaeger, que é acompanhado por outros autores consiste em considerar que as Histórias da Filosofia Grega (talvez não todas) cometem um erro ao considerarem a sofística como uma corrente filosófica.

Problema, sem dúvida, delicado este, o de se considerar o movimento sofístico como devendo ou não entrar na História da Filosofia. Na minha opinião considero o estilo destes homens, sem dúvida, diferente dos investigadores da physis, o que não me parece suficiente para os colocar fora da História da Filosofia.

A grande objecção que levanto a esta tese é a de que não se compreenderia a luta de Platão contra os sofistas, praticamente ao longo de toda a sua obra, se estes não tivessem uma envergadura intelectual, e se não tivessem levantado problemas pertinentes no campo filosófico. Se entre os sofistas foi Protágoras o mais longamente atacado por Platão (teremos de ver mais tarde as razões), vários diálogos mostram, com clareza, que o filósofo considerou, também, como adversários difíceis não só os primeiros sofistas como alguns dos seus discípulos.

Citamos, ainda, Aristóteles que em vários passos da sua obra se debruça sobre estes homens.

O movimento sofístico deve ter o seu lugar na História da Filosofia Grega, segundo penso, e tentarei mostrar que a sua problemática foi importante para o desenvolvimento ulterior da filosofia.

Os sofistas a que nos vamos referir são, por ordem cronológica, Protágoras de Abdera, Górgias de Leontinos, Pródico de Céos e Hípias de Elis. Mas antes de entrarmos numa breve exposição do seu pensamento apresentarei alguns traços gerais deste movimento:

  • os sofistas não constituíram uma escola filosófica: por assim dizer, cada sofista constituiu a sua escola;
  • os sofistas são professores itinerantes, ou seja, permanecem por períodos, mais ou menos longos, em várias cidades gregas;
  • os sofistas recebem honorários pelos seus cursos;
  • os sofistas não pertencem à classe mais elevada da Grécia; talvez, por essa razão, as suas lições são pagas;
  • os sofistas são professores da excelência política ("politike arete");
  • estes professores introduzem duas técnicas da máxima importância: a erística e a retórica.

Diremos, ainda, que o movimento sofístico apresenta dois aspectos que deverei mencionar:

  • não obstante a sua originalidade ele não corta, por completo, com o passado: alguns sofistas continuam a debruçar-se sobre as questões cosmológicas;
  • o movimento sofístico teve um impacto notável em vários sectores da cultura grega que mencionaremos um pouco mais adiante.

*




2.2. Referência aos quatro grandes sofistas

Para uma melhor compreensão do movimento sofístico farei uma referência a Protágoras, Górgias, Pródico e Hípias; coloquei os quatro grandes sofísticos por ordem cronológica.


2.2.1. Protágoras de Abdera

Protágoras, nascido em Abdera, foi o primeiro a intitular-se sofista e pertenceu, como já disse, ao círculo de Péricles.

O sofista ficou famoso pela seguinte frase:


"O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que existem e daquelas que não existem." (frg. B1)


A grande questão que ainda, hoje, se coloca é se o termo "homem" deve ser tomado em sentido colectivo (humanidade) ou no sentido individual (cada homem).

Tenho defendido que o termo "homem" deve ser considerado no sentido individual. Os testemunhos que possuímos, o de Platão, Aristóteles e Sexto Empírico apontam para esta interpretação.

Poder-se-á argumentar que os testemunhos que citei podem não ser verídicos e desta forma a minha interpretação não se poderia manter.

Vejamos, agora com mais detalhe, esta questão:

  1. os testemunhos dos três autores citados são claros a interpretar o termo homem no sentido individual;
  2. os testemunhos que apresentei estão colocados ao longo do tempo: Platão, primeira metade do séc. IV, Aristóteles, segunda metade do séc. IV e Sexto Empírico, séc. II-III D.C.;
  3. só podemos trabalhar sobre os testemunhos que possuímos;
  4. para além dos testemunhos citados os restantes testemunhos e fragmentos não põem em causa a interpretação que apresentei.

"O homem é a medida de todas as coisas" constitui o cerne do fragmento: aprofundemos o seu sentido.

Podemos, agora, ler o fragmento da seguinte forma:

  • cada homem tem a sua verdade sobre todas as coisas

Esta leitura leva-nos aos seguintes aspectos:

  1. há uma verdade para cada um;
  2. todas as verdades têm a mesma graduação;
  3. se cada um tem a sua verdade, só existe um discurso (o da verdade);
  4. segundo a alínea 3) não existe o discurso falso;
  5. há uma ruptura com os pré-socráticos; para estes a verdade está nas coisas enquanto para Protágoras ela está em cada homem.

*

No diálogo Protágoras, Platão apresenta um longo discurso que atribui ao sofista; este discurso ficou conhecido por mito de Epimeteu e Prometeu.

Este mito apresentado por Protágoras mostra o progresso da Humanidade ao longo do tempo, desde os seus inícios até à Cidade regida por leis justas.

É interessante notar que o sofista considera uma evolução humana não só material mas também cultural.

Protágoras considera que a Cidade subsiste com leis justas, como já disse, e também com a participação de todos os cidadãos.

O sofista não é um reformador político, segundo a minha opinião, mas sim um defensor da democracia ateniense.

A questão que se coloca, neste momento, é saber se há uma conciliação deste mito com a frase "O homem é a medida de todas as coisas."

*

Protágoras afirmou que existe um discurso forte e um discurso fraco. A posição do sofista tem dado lugar a variadas interpretações.

Segundo penso, é através desta posição de Protágoras que se articulam a frase "o homem é a medida de todas as coisas" e o mito de Epimeteu e Prometeu.

Se cada homem tem a sua verdade, esta posição levada ao extremo conduziria a uma anarquia que aniquilaria a comunidade, ou seja, a própria Cidade.

Ora, nós vimos que Protágoras é defensor da harmonia na Cidade e também do regime democrático.

Segundo, penso, o discurso forte é aquele que reúne a maioria enquanto o discurso fraco é o da minoria.

Assim, para manter a coesão na Cidade é necessário que as leis provenientes da maioria sejam seguidas e respeitadas.

Parece-me que "o homem é a medida de todas as coisas" não colide com as leis oriundas dos órgãos políticos: o cidadão respeita as leis embora cada um mantenha a sua verdade.

A importância e a influência de Protágoras foram notáveis o que tentaremos mostrar, ainda, nestes Apontamentos.





2.2.2. Górgias de Leontinos

Górgias é oriundo de Leontinos (Sicília) onde a retórica deu os seus primeiros passos. O sofista teria contactado com Empédocles do qual teria sido discípulo.

Górgias foi o grande retórico da segunda metade do século V; ficou famoso pelos seus discursos mas também por ter escrito um tratado de Filosofia (Do Não Ser ou da Natureza).

O tratado (frg. B3) apresenta três teses que o sofista vai desenvolver:

  • Nada existe;
  • se existe alguma coisa não é apreendida;
  • se existe alguma coisa que se apreenda não pode ser comunicada a outrem.

O objectivo do Tratado tem sido considerado, por vários historiadores, como um ataque à Escola eleata.

Segundo penso não é, apenas, a Escola eleática a ser visada mas também outras estariam na mira de Górgias.

O que o sofista queria mostrar, por absurdo, é que se a primeira tese fosse infirmada cair-se-ia na segunda e se as duas primeiras fossem infirmadas cair-se-ia na terceira; Górgias bloqueava, assim, todas as saídas.

A terceira tese é importante, na medida em que, Górgias aproveita a ocasião para dissertar sobre as coisas e as palavras.

*

Se o Tratado de Górgias é importante, todavia, a grande fama granjeada por Górgias foi a sua utilização da Retórica.

Os precursores do sofista são sicilianos, da região da qual Górgias é oriundo. Mas tudo aponta no mesmo sentido: se os precursores dão o primeiro passo, Górgias vai mais longe e a Retórica consolida-se devido ao seu esforço.

A Retórica é a técnica de bem falar, constituída por discursos que visam persuadir os ouvintes.

Para atingir os seus fins o discurso tem de ser correcto na utilização da língua mas também na utilização de um conjunto de regras.

No seu discurso Elogio de Helena, Górgias mostra a força da palavra:


"O discurso é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível leva a cabo acções divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o medo como afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixão" (11.8 - Trad. de Manuel Barbosa e Inês Castro).


Nesta passagem vê-se o vigor, a convicção e o orgulho de Górgias no poder da palavra; não obstante o "corpo diminuto", o discurso "leva a cabo acções divinas".

É minha opinião que Górgias quer mostrar que a palavra é superior à força física. O sofista, possivelmente, é defensor do embate entre discursos em detrimento dos combates entre guerreiros. Se assim é, estamos perante uma atitude humanista e civilizada.

A posição de Górgias é reforçada na seguinte passagem:


"Na verdade, assim como certos medicamentos expulsam do corpo certos humores, suprimindo uns a doença e outros a vida, do mesmo modo de entre os discursos, uns há que inquietam, outros que encantam..." (11.14 - Trad. de Manuel Barbosa e Inês Castro) .


A passagem, agora, transcrita reforça e amplia a primeira passagem.

É a exemplificação do poder da palavra mas Górgias, ainda, vai mais longe.

Considero que Górgias acreditando no poder do discurso tem a consciência de que este pode ser positivo mas também negativo. É possível que o retórico queira alertar, igualmente, para a possibilidade do mau uso por parte de alguns oradores.

Górgias ficou na História da Cultura como cultor de uma técnica que chegou até o nosso tempo.

*

Obs.:

As passagens da tradução que utilizamos pertencem à seguinte obra: Górgias, Testemunhos e Fragmentos, Lisboa, Colibri, Tradução, comentário e notas de Manuel Barbosa e Inês de Ornellas e Castro.




2.2.3. Pródico de Ceos

Abordarei, apenas, alguns aspectos do pensamento de Pródico de Ceos.

Este sofista teve grande importância no campo da linguagem. Para o movimento sofístico este campo era importante para que a retórica e a erística se constituíssem como técnicas fortes e persuasivas.

Pródico é citado pela sua perícia em distinguir os vários sentidos das palavras. A sua preocupação rasgava novos horizontes não só para a sofística mas também para os gramáticos.

*

Pródico é, igualmente, célebre por um apólogo conhecido por Escolha de Herácles.

Estamos perante uma incursão no terreno da moral. O sofista apresenta Herácles na encruzilhada constituída pela Virtude e pela Luxúria. As duas personagens apresentam os argumentos para o herói seguir o caminho indicado por cada uma delas.

A Luxúria mostra um caminho, sem obstáculos, repleto de prazeres. Por seu lado, a Virtude indica um caminho, difícil e penoso mas que vai atingir o bem estar espiritual, a felicidade.

O herói Herácles escolhe o caminho da Virtude não obstante deixar de lado as delicias da Luxúria.

Herácles ao seguir a Virtude atinge, como disse, a felicidade e a consideração dos Gregos.

A breve referência que fiz ao apólogo de Pródico mostra que a corrente sofística, na segunda metade do século V, pelo menos em parte, nem é amoral nem imoral.

No caso de Pródico é bem clara e patente a sua preocupação pela moral a qual constitui uma parte importante da sua obra.




2.2.4. Hípias de Élis

Hípias, oriundo da Cidade de Élis, o mais jovem dos quatro grandes sofistas, é aquele que foi mais maltratado por Platão. Por aquilo que conhecemos de Hípias, ele não merecia a critica contundente e, sobretudo, o ridículo que lança sobre o sofista.

As indicações que possuímos mostram uma série de obras distribuídas por vários campos. Citemos, apenas, duas para ilustrar o que dissemos:

  • Lista de nomes de povos (frg. B 2)
  • Lista dos vendedores olímpicos (frg. B 3)

Quanto ao conteúdo destes livros só podemos avançar com conjecturas.

O primeiro livro citado é possível que tivesse apresentado aspectos etnográficos e talvez, geográficos para poder situar os povos que fariam parte da Lista.

O segundo livro, que apresenta os vencedores olímpicos, talvez tivesse, também, o objectivo de constituir uma cronologia, tarefa, sempre, importante naquela época.

*

Vamos, agora, debruçarmo-nos sobre um tema que, tudo o indica, era importante para o sofista. Platão no diálogo Protágoras, 337 C-338 B coloca Hípias a apaziguar uma discussão:


"...vós que estais aqui presentes, considero vos como pertencendo todos à mesma linhagem, à mesma família, à mesma Cidade, por natureza e não pela lei" (Protágoras,337 C)


Se Platão é fiel ao pensamento do sofista podemos extrair vários aspectos desta parte do discurso de Hípias:

  • todos pertencem à mesma família o que significa que não há barreiras intransponíveis entre os homens;
  • as diferenças entre grupos de homens (famílias, Cidades, etc.) deve-se à lei, ou seja, à lei por convenção;
  • Hípias considera que a lei mais justa é a da natureza.

O sofista vai continuar o seu discurso que é importante para a compreensão da sua doutrina:


"Por natureza, o semelhante é da mesma linhagem do que o semelhante, enquanto a lei, tirana dos homens comete uma violência à natureza" (Protágoras, 337 C).


Tentemos dilucidar a passagem transcrita:

  • Hípias faz a distinção entre lei por natureza e lei por convenção. A lei por convenção é um produto do legislador ou de um órgão político. A lei por convenção pode ser modificada e as Cidades apresentam as suas leis que podem ser variáveis de Cidade para Cidade.
  • A lei por natureza é universal e repousa sobre a Natureza;
  • a terminologia lei por convenção e lei por natureza é empregada pelos sofistas e, sobretudo, no século IV, vai ser usada por pensadores que não são sofistas;
  • a lei por convenção pode ser violenta em relação à lei por natureza e não é, como já disse, universal;
  • talvez, por influência de Empédocles o sofista vai considerar que "o semelhante é da mesma linhagem do que o semelhante" o que significa, que o semelhante atrai o semelhante;
  • o semelhante atrai o semelhante significa, pela lei da natureza que o homem respeita e gosta do homem;
  • para Hípias a lei por natureza não conduz à lei do mais forte.

Cálicles, uma personagem do diálogo platónico Górgias ao defender a lei por natureza identifica-a com a lei do mais forte.

Cálicles considera que o mais forte deve mandar nos outros e que as suas paixões não devem ser cerceadas.

Ora, Hípias, segue um caminho diferente: a lei por natureza leva à solidariedade e ao respeito do semelhante pelo semelhante.

Hípias, o sofista, é um humanista e tem uma visão cosmopolita, como também Demócrito a teve.

Esta pequena digressão, segundo penso, mostra, pelo menos, que alguns sofistas se preocuparam com a moral.




2.3. A importância da sofística.

Nos nossos dias a reabilitação da sofística, como já disse, é um facto, embora se possa cair em exageros um pouco semelhantes aos anteriores.

Durante um longo período, os sofistas foram considerados não só como personagens menores mas também como prejudiciais à cultura do seu tempo.

O ataque à sofística e o seu denegrimento inicia-se, já, na segunda metade do século V, ou seja, em vida dos seus grandes representantes. Aristófanes, o comediógrafo, é um dos seus críticos contundentes. Mas considera-se Platão, mais do que Aristóteles, como um dos detractores da sofística.

Considero que se atentar na crítica de Platão aos sofistas pode-se verificar os seguintes pontos:

Segundo penso, Platão é, por vezes, injusto em relação aos sofistas: os diálogos Hípias Maior e Hípias Menor são exemplos do que acabei de dizer.

Creio, todavia, como já foi notado por vários historiadores, que Platão mostra deferência por alguns sofistas: a apreciação da doutrina de Protágoras no Teeteto é paradigmático deste ponto de vista; o fundamental na minha perspectiva é, porém, a diferença radical de posições mantidas por Platão e pelos sofistas. Vejamos um pouco melhor este ponto.

Os sofistas, de uma forma geral, defenderam o primado da sensação. O filósofo irá considerar que o sensível, pela sua mobilidade, não pode ser objecto da Ciência; esta terá de possuir um objecto estável e universal. Mas também alguns sofistas consideram que há apenas um único discurso, ou seja, não há discurso verdadeiro e falso o que será, igualmente, combatido por Platão.

Acresce ao que já dissemos a oposição platónica às técnicas da eristica e da retórica.

O que queremos dizer é que existe uma oposição radical entre Platão e os sofistas. E se por um lado tudo isto mostra a animosidade do filósofo em relação aos sofistas por outro mostra a importância filosófica que estes tiveram.

Ora, se os sofistas tiveram uma influência no campo filosófico a sua importância faz-se sentir noutros sectores. Na literatura (por exemplo em Euripides), na história (é o caso de Tucídides), na linguistica e sem dúvida no campo político-social, a sua presença é marcante.




3. SÓCRATES


3.1. O pensamento de Sócrates

Ao falar-se de Sócrates temos de defrontar a chamada questão socrática.

Esta questão consiste na abordagem dos testemunhos àcerca de Sócrates.

A questão é difícil porque os testemunhos não são coincidentes.

Ainda, em vida de Sócrates, a corrente anti-socrática conta com a comédia As Nuvens da autoria de Aristófanes. Esta comédia é demolidora para Sócrates. O filósofo é apresentado como um adepto da filosofia pré- socrática e da corrente sofística; mais ainda, ele surge na comédia de Aristófanes como um charlatão.

No século IV, logo nos primeiros anos, surge a corrente socrática, sobretudo constituída por obras dos seus discípulos.

Platão e Xenofonte escrevem, cada um, uma Apologia de Sócrates. Embora sejam ambos discípulos de Sócrates há diferenças nas duas Apologias.

A questão é complexa devido, por um lado ao facto de Sócrates nada ter escrito, e por outro, os testemunhos serem diferentes.

Houve, da parte de alguns historiadores a tentativa de conciliar os vários testemunhos. Assim, teria havido duas fases no percurso de Sócrates:

  • a primeira em que Sócrates teria sido um adepto da filosofia da Natureza e talvez, também, da corrente sofística;
  • a segunda em que Sócrates aparecia na fase retractada pelos seus discípulos.

Embora considere esta tese verosímil penso que ela não resolve as discrepâncias nas obras de Platão e de Xenofonte.

Pessoalmente, creio que a questão Socrática ainda está aberta e pouco poderemos dizer, com alguma segurança, sobre Sócrates.

*

A questão socrática levanta alguns problemas difíceis de ultrapassar, como já vimos, o que aconselha alguma prudência na exposição do pensamento de Sócrates.

Vejamos alguns aspectos que poderemos avançar com uma certa segurança.

O método utilizado por Sócrates está pelo menos próximo da erística sofística. É um método essencialmente refutativo que se aplica ao saber do seu interlocutor.

A fazer fé numa passagem da Metafísica de Aristóteles, Sócrates estaria interessado nas definições e nos termos universais. E Aristóteles vai mais longe ao afirmar que para Sócrates os universais não estavam separados das coisas, ou seja não eram independentes.

O Estagirita queria dizer também que a responsabilidade na separação dos universais como inteligíveis pertence a Platão.

Sem dúvida que o esforço de Sócrates em estabelecer a definição é um ponto filosoficamente importante.

A este ponto podemos juntar outro, atestado por Aristóteles noutra passagem da Metafísica: a indução foi utilizada por Sócrates.

Diremos agora que o tema da virtude devia ter tido um lugar de destaque na reflexão socrática. A natureza da virtude, o seu ensino, eram aspectos caros a Sócrates.

A estes temas voltaremos quando abordarmos Platão mas será pelo menos, difícil, descortinar o que pertence ao mestre e ao discípulo.




3.2. A condenação de 399

É sabido que em 399 Sócrates foi acusado de impiedade e de corromper a juventude e comparecendo perante o tribunal foi condenado à morte.

Com frequência a condenação de Sócrates é vista ou como um atentado à filosofia ou como uma questão religiosa.

Pensamos, todavia, que qualquer dos pontos de vista avançados não resolve a questão, o que significa que avançaremos com outra explicação.

Compreendemos que a indagação socrática suscitasse alguma má vontade e que a suspeita de impiedade fosse relevante na Atenas de então.

Algumas das personalidades acusadas dos males que caíram sobre Atenas durante a Guerra de Peloponeso, ou imediatamente após a capitulação, frequentaram o círculo socrático. Alcibiades, apontado como um dos responsáveis pelo desastre da expedição à Sicília, Crítias e Cármides que pertenceram ao regime sangrento que governou a Cidade após a capitulação de 404 foram alguns dos homens que conviveram com Sócrates.

Entre 404 e 399 medeia um curto espaço de tempo e convirá relembrar que em 403 a democracia foi restaurada. O regime democrático foi moderado contendo-se em fazer uma perseguição aos seus inimigos. Mas com toda a probabilidade alguns ajustes de contas teriam ocorrido.

Em 399 quando Sócrates comparece perante o tribunal estava fresca na memória a derrota e o governo dos trinta tiranos. E era muito possível que os juizes se lembrassem das ligações perigosas entre Sócrates e políticos que tinham contribuído para o descalabro de Atenas.

Por aquilo que podemos saber Sócrates não devia ser um ímpio: não negou a existência dos deuses e seria, provavelmente, um homem piedoso.

Assim consideramos que em 399 ocorreu um ajuste de contas, ou seja, a acusação de impiedade camuflou um caso político (o que já tinha acontecido com Protágoras e Anaxágoras).

Não deixa de ser significativo que no séc. IV, já depois da morte de Sócrates, tivessem surgido os ataques contra o filósofo pondo a tónica na responsabilidade da formação dos políticos a que nos referimos.

Diremos, por fim, que o nosso ponto de vista não põe em causa o regime democrático de Atenas. Este funcionou, pelo menos, de forma razoável e os acidentes de percurso não puseram em causa o seu valor.



3.3. A chamada revolução socrática.

Ainda hoje é vulgar ler-se que Sócrates inaugurou um novo ciclo da filosofia grega. Tal significa que a um período cosmológico se seguia o período antropológico inaugurado por Sócrates: estávamos perante uma autêntica revolução.

Por aquilo que sabemos de Sócrates, este foi sem dúvida uma figura relevante na segunda metade do séc. V. Todavia este período é marcado por outros acontecimentos importantes.

Em primeiro lugar a medicina tornou-se um acontecimento marcante no período referido. A sua influência em Platão, por exemplo, é explicita e importante.

A medicina, pelo seu objecto, debruça-se sobre o que por vezes se chama a natureza humana. O que é o homem e o interesse por ele são preocupações do Corpo Hipocrático. Assim a medicina grega fornece uma contribuição importante para o domínio da antropologia.

Qualquer que seja o valor que se atribua ao movimento sofístico será difícil sustentar que ele tenha uma pequena influência na Cultura Grega da segunda metade do séc. V.

Os sofistas, ao que nos parece, tiveram um papel relevante no campo que agora nos interessa considerar.

A preocupação pela paideia é clara nos sofistas. A utilização de algumas técnicas, como a erística e a retórica, procuravam a valorização dos seus discípulos. Era, portanto, o aparecimento de uma educação de grau superior.

Se juntarmos ao que já dissemos o interesse pela linguagem, o tema do conhecimento e a ética deparamos com um vasto campo no qual o homem está no centro.

O que queremos dizer é que Sócrates não foi o único personagem a operar uma mudança na segunda metade do séc. V. Os médicos do Corpo Hipocrático, os sofistas e Sócrates, são todos eles os protagonistas da viragem a que assistimos no período que menciona-mos, o que nos leva a considerar que na segunda metade do séc. V ocorreu uma revolução cultural.

Para concluir diremos que não há uma revolução socrática mas sim uma revolução em que outros tiveram uma importância que não podemos menosprezar. O que afirmamos não diminui o valor da filosofia de Sócrates mas coloca-o no contexto em que viveu.




4. Os Socráticos Menores



4.1. Introdução

Os socráticos menores são discípulos de Sócrates; Platão, também discípulo será o socrático maior.

Esta designação, que terá apenas uma utilidade pedagógica, não é muito feliz na medida em que contém um juízo de valor. Não pondo em dúvida a envergadura de Platão terá de se fazer um balanço da actividade destes homens. Não caberá no âmbito destes Apontamentos proceder a essa tarefa propondo-nos apenas traçar algumas linhas das escolas que apresentam Sócrates como figura tutelar.

O estudo destas escolas é difícil: mais uma vez, verificamos a perda de uma produção considerável. A reconstituição tem de realizar-se a partir de fragmentos e de testemunhos.

Trataremos dos primórdios das escolas cínica, cirenaica e megárica. Como tentaremos mostrar elas auxiliam a compreensão do platonismo e por isso é desejável o seu conhecimento mesmo não muito desenvolvido.




4.2. A escola cínica

O fundador da escola é Antístenes. Pertenceu ao círculo socrático mas, antes, foi discípulo dos sofistas, talvez de Górgias.

A escola cínica tem aspectos bem marcados. Os seus membros levam uma vida ascética: vestem-se da forma mais simples e alimentam-se do que lhes é dado. Não possuem bens e são hostis aos estatutos económico e social: como já foi notado esta escola faz lembrar uma ordem mendicante.

A escola cínica preocupa-se com a postura perante a vida; assim não é para admirar que coloque a virtude em primeiro lugar e a ciência em segundo.

A figura tutelar dos cínicos é o herói mítico Herakles. É o exemplo, mais claro, dos trabalhos que são necessários para atingir a virtude.

A virtude do sábio cínico consiste na independência face aos outros, às coisas e às paixões: o seu desígnio é a autonomia.

Quanto ao tema do conhecimento Antístenes considera que cada coisa tem uma essência: para este filósofo não há essências universais mas sim individuais que são os nomes pelos quais designamos as coisas.

Para Antístenes não há definições das coisas; quanto muito, podemos fazer comparações para clarificar o que cada coisa é.

Importante sob o ponto de vista filosófico é a tese do fundador da escola quanto à predicação: esta não é possível, pois não existe comunicação entre as essências. Homem e música são essências singulares e por isso só podemos dizer que o homem é homem e que o músico é músico.

Anotemos, ainda, a posição de Antístenes quanto ao discurso: para ele não há discurso verdadeiro e discurso falso. Há um único discurso pois quando se fala sobre uma determinada coisa há apenas um discurso e por isso não se pode falar em falsidade.

A presença de Protágoras é nítida, ao que parece, o que permite ver a influência sofística nos primórdios da escola.




4.3. A escola cirenaica

Aristipo, originário de Cirene, colónia grega do Norte de África, foi discípulo de Sócrates e recebeu, igualmente, a influência sofística.

Fundou a sua escola na Cidade natal.

Os cirenaicos consideram como fundamental a acção, a vida prática, em detrimento da teoria. Todavia, como veremos, a filosofia do conhecimento cirenaica é importante.

Esta escola defende que a sensação constitui o conhecimento. O que nós temos são sensações e estas não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas. Temos acesso às sensações e elas são verdadeiras na medida que constituem o único critério: quaisquer que sejam as condições, quaisquer que sejam as diferenças, e a sensação é verdadeira. Isto é, se alguém diz que tem a sensação do branco e outro do azul referente ao que chamamos o mesmo objecto qualquer delas é verdadeira porque é individualmente que temos acesso a elas.

Segundo os cirenaicos não podemos dizer o que são os objectos. O que podemos dizer é que temos a sensação do branco ou do doce mas não podemos afirmar que este objecto é branco e aquele doce. Assim, o que chamamos realidade é uma incógnita, é algo de incognoscivel.

A ética da escola decorre deste sensismo. Deverá seguir-se as sensações e estas podem dividir-se em três categorias: as que provocam a dor, as que são neutras e as que oferecem o prazer.

O que é natural é que o sábio siga as sensações que lhe dão prazer. Desta forma, estamos perante uma ética hedonista.

Será importante referir que nesta concepção é sábio aquele que é autónomo. Afastando-se da dor, procurando tranquilamente a prazer, o sábio não deve ser dominado pela paixão e pelos desejos. É próprio do sábio usufruir do prazer presente sem se preocupar com o passado e o futuro. A autonomia, a independência constituem o traço fundamental da sabedoria.

É importante verificar na escola cirenaica a presença da sofística, em especial de Protágoras, no respeitante ao temas do conhecimento.

Segundo pensamos, e tentaremos mostrá-lo mais tarde, esta situação explicará, pelo menos, em parte, a critica de Platão ao sofista Protágoras.




4.4. A escola megárica

A escola foi fundada por Euclides de Mégara (não confundir com o geometra Euclides), possivelmente antes da morte de Sócrates.

Após a morte de Sócrates vários discípulos foram para Mégara, para junto de Euclides que, como já disse devia ter aberto a sua escola há já alguns anos.

Platão, cerca de dez anos, mais novo do que Euclides estabelece com este uma longa e sólida amizade.

A escola de Mégara, das três que estamos a examinar era aquela que mais próxima da filosofia platónica; não obstante este facto Platão irá criticar alguns aspectos da doutrina dos megáricos.

Apresentarei, brevemente, alguns pontos da filosofia megárica:

  1. o conceito de Bem é a entidade mais elevada para a escola megárica. Ele é designado por nomes diversos mas o Bem é uno;
  2. concebem uma pluralidade de essência que são isoladas umas das outras. O Bem participa de todas as essências;
  3. se as essências não se articulam entre si não é possível a predicação;
  4. o sensível é o Não-Ser. Nada nasce nem perece assim como não existe o movimento;
  5. para defenderem a sua doutrina apresentam um conjunto de paradoxos utilizando a metodologia de Zenão de Eleia.

Para findar esta breve abordagem direi que a escola de Mégara cruza as influências de Sócrates e da filosofia eleata (é possível que Euclides tivesse sido um eleata, na sua juventude).


©Álvaro dos Penedos


"Sofistas, Socráticos e Socráticos Menores" foi extraído de Os Dias de Deméter


Obs.: este texto também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Iniciação à Filosofia Antiga ou directamente através deste link.

1 comentário:

Anónimo disse...

Caros Amigos:

O que aqui está publicado é uma ajuda preciosa para todos os que desejam conhecer o essencial de debates que se prolongam por dois milénios na História do Ocidente!

Tive a oportunidade de apreciar ao "vivo", 4 anos antes do Homem chegar à Lua, como o "pensamento" já tinha corrido as "sete partidas" e a nós, pouco mais restava que aprender e meditar.

Quarenta anos depois penso o mesmo. Os Gregos são, por enquanto, uma demonstração de que a "Eternidade" talvez não seja impossível! Reler estes "apontamentos" é um regresso a uma infinda "frescura" do Espírito.

Levi Malho
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