terça-feira, 23 de outubro de 2007


O primeiro módulo dos Cursos Livres, "Cultura Clássica - Os Poemas Homéricos" está a decorrer na sala 201 da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Encantamentos



Platão e as artes de Abáris dos Hiperbóreos





1. O prestígio dos xamanes

A Grécia antiga foi pródiga na produção de narrativas religiosas e fabulosas (relembremos a Odisseia) e algumas destas últimas entraram no imaginário ocidental.

A religião dava uma ajuda substancial a essa produção: deuses olímpicos, titãs, daimones, ninfas, tinham influência profunda no quotidiano do grego e povoavam a sua imaginação.

Personagens extraordinárias pontuaram esta mentalidade ao longo do tempo.

As feiticeiras tiveram um lugar de destaque. Já na Odisseia a ninfa Circe surge como uma feiticeira que utilizando um filtro põe em perigo Ulisses e os seus companheiros [1]. E na segunda metade do século V Eurípedes com a tragédia Medeia apresentava esta princesa bárbara, feiticeira cruel, vingando-se da sua rival com os poderes que possuía [2].

Não é este tipo de personagem, todavia, que nos vai interessar no nosso ensaio. É o xamane que essencialmente vai ser o objecto da nossa atenção. Entre o feiticeiro e o xamane há algum contacto: ambos são capazes de operar prodígios, têm um poder que o homem comum não possui.

As diferenças, porém, entre o feiticeiro e o xamane são consideráveis. Este último é uma figura protectora da comunidade: preocupa-se com o destino da alma dos membros da sua comunidade, sendo ele que as conduz para o território além-túmulo. Surge como um elo de ligação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses e assim é considerado um homem divino.

Entre os seus prodígios contam-se a capacidade de separar a alma do seu corpo durante períodos, por vezes muito longos e o defender a comunidade de pestes e cataclismos naturais.

O xamane surge como o depositário da mais antiga sabedoria. Essencialmente essa sabedoria tem por âmbito as coisas divinas e o destino da alma mas a sua palavra, igualmente, é capaz de acalmar e de curar.

O que dissemos sobre o xamane não pretende, de forma alguma, constituir uma exposição, em profundidade, do papel desempenhado por este personagem [3]. Pretendemos, sim, facilitar a compreensão do nosso texto.

Há um ponto que gostaríamos que ficasse claro quanto à nossa posição perante tais matérias.

Ao historiador interessa estudar e compreender o significado de determinadas correntes. O que está em causa neste trabalho é o xamanismo. Não é pertinente se estamos ou não perante um charlatanismo.

Se existe um grupo de personagens deste tipo, rodeado pela aura do fantástico é porque esse grupo era constituído por homens de grande prestígio [4].

Os gregos, na sua grande maioria, olharam-nos como seres prodigiosos aceitando, portanto, como verdadeiros os gestos dos xamanes. O historiador não pode esquecer-se do longo período que o separa dessa época o qual determina padrões de comportamento dissemelhantes.

Nesta parte introdutória do nosso ensaio apontamos ainda o xamane como um antepassado do filósofo. E como antepassado deixa, também, marcas profundas e explícitas nalguns pensadores gregos.

Citemos como exemplos, embora bem conhecidos, Pitágoras [5], Parménides [6] e Empédocles [7]. E no tempo de Platão, como mostrou Dodds [8], o antigo saber estava ainda bem presente.

É certo, porém, que a partir da Guerra do Peloponeso há uma crise religiosa que se prolongou pelo século IV. Uma descrença no papel desempenhado pelos deuses e actos de impiedade são atestados com clareza no período mencionado. Ao lado desta atitude encontra-se, como dissemos, um espírito religioso o qual prolonga a tradição.

É neste quadro, cuja complexidade passamos ao largo, que se insere o trabalho que realizámos.

Gostaríamos de apresentar, ainda, duas considerações preliminares para uma melhor compreensão do que se vai seguir.

Em primeiro lugar diremos que a nossa pretensão é estudar as relações de Platão com o encantamento representado essencialmente pelos xamanes.

Como veremos, assim o esperamos, a questão que pretendemos tratar é complexa e tem provocado interpretações bastante diversificadas.

Em segundo lugar o trabalho incide sobre algumas passagens de dois diálogos de Platão: o Cármides e o Fédon. Pontualmente far-se-á referência a outros diálogos sem a preocupação de tratarmos exaustivamente o nosso tema fora dos dois diálogos citados.



2. Uma poção para as dores de cabeça

Vamos iniciar a nossa indagação com a análise de um conjunto de passagens do diálogo Cármides, o qual nos oferece um exemplo de encantação.

Em determinada altura, Critias referindo-se ao jovem Cármides diz a Sócrates o seguinte:


Há momentos, dizia-me que, ao levantar-se pela manhã lhe doía a cabeça. Pões alguma objecção em fingires diante dele que conheces um remédio para as dores de cabeça? [9].


Depois de Cármides ter chegado junto a Sócrates e perguntado qual o remédio para o seu mal prossegue o diálogo:


Respondi que era uma planta, e que à poção se ligava um canto mágico. Se alguém o entoasse enquanto o usava, o remédio deixá-lo-ia absolutamente são. Sem o canto mágico, porém, de nada valeria a planta [10].


A passagem acabada de transcrever mostra um determinado tipo de encantação. A poção a administrar só tem efeito quando acompanhado por um canto. E como podemos ver também esta encantação não tem por objectivo o trazer qualquer malefício a alguém mas sim libertá-lo da dor.

No diálogo, Sócrates vai acrescentar alguns pormenores extremamente interessantes ao remédio que está a receitar:


esta encantação que eu aprendi lá no exército, com um dos trácios médicos de Zalmóxis, que segundo se diz, também conferem a imortalidade [11].


Esta passagem é relevante. Há a referência aos trácios, a Zalmóxis, figura que foi divinizada. E neste momento é conveniente fazer uma pausa e destacar dois pontos:

  1. Sócrates inventa uma história acerca de uma poção mágica, ou seja, há um discurso na base de uma ficção por parte do filósofo sobre o encantamento;
  2. não obstante a ficção, o discurso de Sócrates aparece como verosímil chegando ao pormenor de falar dos médicos trácios e de Zalmóxis, este ligado ao xamanismo que influenciou os gregos.

O discurso sobre a encantação vai continuar aprofundando e ampliando o que foi dito anteriormente.

Segundo o médico trácio para curar a dor de cabeça é necessário curar todo o corpo mas curar o corpo implica o tratamento da alma [12].

Pela sua importância a concepção exposta vai levar-nos de novo a colocar dois pontos para uma melhor compreensão da questão:

  1. na cura de qualquer parte do corpo é necessário levar em linha de conta a sua globalidade, ou seja, todas as partes são interdependentes porque o corpo actua como um todo;
  2. a referência à alma é relevante: é de sublinhar o facto de a saúde estar ligada à alma. Quer dizer, portanto, que uma doença do corpo deve ser tratada através da alma.

Sócrates ao prosseguir, ainda, a sua conversa sobre este assunto, afirma que os médicos gregos não compreendiam a maioria das doenças devido ao seu desconhecimento da acção da alma sobre o corpo [13]. E Sócrates acrescenta ainda:


Dizia ainda, meu caro amigo, que a alma se trata com estas encantações, encantações essas que consistem em belas conversas. É destas conversas que nasce nas almas a prudência. [14]


Todas estas informações leva-nos a um comentário com a pretensão de destacar toda a sua importância.

O discurso de Sócrates que expõe a conversa fictícia com o médico trácio apresenta uma progressão extremamente interessante: o encantamento é aplicado a uma parte do corpo (neste caso a cabeça), depois é aplicado a todo o corpo e por fim deve ter por objecto a própria alma.

Notemos ainda, nesta altura do diálogo que a cura da alma faz-se com encantações, ou seja, as conversas que fazem nascer a prudência. A relação entre a encantação e a prudência é fundamental no diálogo Cármides e isso mesmo tentaremos mostrar noutra parte deste ensaio.

Debrucemo-nos, entretanto sobre dois temas abordados no discurso de Sócrates, merecedores igualmente da nossa atenção: o da alma e o da medicina.

As dificuldades que envolvem a cronologia dos diálogos de Platão limitam, em parte, o nosso esforço de dilucidação dos temas assinalados. Podemos, todavia, dizer que o Cármides é um diálogo da juventude colocado entre o grupo constituído pela Apologia de Sócrates, Críton e o Êutifron o qual deve marcar o início da carreira literária de Platão e o Protágoras a fechar, em nossa opinião, o primeiro período da sua actividade literária [15].

Após estas observações preliminares necessárias, quanto a nós, para colocar o mais correctamente possível as questões acima referidas, vejamos a da medicina.

As referências de Platão à medicina são numerosas e significativas na sua obra, em tom francamente elogioso [16].

Na passagem já citada do Cármides há, todavia, uma crítica aos médicos gregos. Qual o sentido desta crítica?

Ao que nos parece Guthrie resolve a dificuldade. Segundo o historiador inglês a crítica de Platão não atinge a totalidade da medicina grega na medida em que a concepção do médico trácio seria idêntica à da escola hipocrática [17].

É importante a atitude do filósofo. Por um lado mostra que já no período da juventude a reflexão sobre a medicina estava presente por outro que existe nesse momento uma crítica a uma escola de medicina grega.

Se a referência à medicina é importante não o é menos a noção de alma que transparece no Cármides.

Digamos desde já que a alma neste diálogo não apresenta a complexidade com a qual nos surge no grupo constituído pelo Fédon, República e Fedro [18].

A reflexão aprofundada sobre o tema da alma surge após a primeira viagem de Platão ao sul da Itália e à Sicília, onde o contacto com os pitagóricos levou o filósofo a preocupar-se, em maior escala, com alguns problemas que surgirão com insistência a partir do Górgias [19].

No Cármides a alma aparece como a parte mais importante do Homem o que não constitui propriamente uma tomada de posição original. Mas surge igualmente como uma entidade simples, como já dissemos, capaz de influir no corpo.

Pensamos, porém, que é importante notar que o dualismo corpo-alma está ainda ausente do pensamento platónico. A noção do corpo como cárcere da alma não é da época na qual Platão escreveu o Cármides: é posterior e deve-se à influência pitagórica referida anteriormente.

As nossas observações incidem até este momento nalguns passos do Cármides relevantes para os objectivos do nosso trabalho. Mas existem outras passagens do mesmo diálogo as quais nos permitem ir mais longe na compreensão do platonismo quanto ao tema que nos está a ocupar. Vamos, agora apresentá-las.

Em determinado passo do diálogo diz Sócrates ao jovem Cármides:


Mas a questão é esta: se como afirma Critias, já possuis a prudência e é suficientemente prudente para quê as encantações de Zalmóxis ou de Abáris dos Hiperbóreos? [20].


Esta passagem mostra em primeiro lugar que quem possui a prudência não necessita de ser encantado. Ele está curado, está de saúde, ou seja, já foi encantado. É este, quanto a nós, o sentido da passagem citada.

Outro aspecto a salientar, em segundo lugar, é a referência aos xamanes. Depois de Zalmóxis ter sido mencionado é a vez de Abáris dos Hiperbóreos figurar ao lado do primeiro.

É interessante notar-se que Platão menciona os xamanes mais famosos e admirados pela Grécia. E Zalmóxis e Abáris são personagens ligadas à Tràcia, uma das zonas difusoras do xamanismo.

Platão não faz a apologia do xamanismo. Mas, ao que nos parece, há pelo menos, consideração por esta corrente. E podemos notar uma profunda analogia entre o xamanismo e a filosofia.

A analogia, a que fizemos referência, percorre praticamente todo o diálogo. Quase no final diz o jovem Cármides:


Creio mesmo, ó Sócrates, que bem preciso de encantações e, por mim, nada me impede de te ouvir recitá-la todos os dias, até que tu próprio digas que é suficiente. [21]


Para se compreender a passagem acabada de citar convém referir que o diálogo se debruça sobre a noção de prudência. Cármides mostra-se incapaz de a definir e é por isso que está disposto a frequentar Sócrates o tempo necessário para saber o que é a prudência para depois a possuir.

Após esta observação anotemos, ponto importante para o nosso trabalho, que Sócrates surge semelhante a um xamane, capaz de encantar e a filosofia aparece como algo capaz de produzir prodígios.

Como já dissemos Platão não faz a apologia do xamanismo mas a filosofia surge como análoga ao xamanismo. Pretende dar a conhecer e a adquirir a prudência, virtude difícil como mostra o diálogo.

E o filósofo é aquele capaz de preparar os espíritos para a receber.



3. Uma certa criança que existe em nós

Após a nossa digressão pelo Cármides vamos transitar para o diálogo Fédon, esse labirinto platónico como lhe chamou um autor [22].

Tal como fizemos anteriormente, não vamos tratar o Fédon na sua globalidade mas apenas examinar as passagens que consideramos relevantes para o presente trabalho.

Ao tratar-se da imortalidade da alma, a determinada altura diz Sócrates a Cebes:


Dá-me a ideia, contudo, que tanto tu como Símias estariam interessados em levar mais a fundo a argumentação ... levados, quem sabe, por um pavor todo infantil de que, ao sair a alma do corpo, logo a brisa a dissipe de verdade e a reduza a fumo - especialmente se calha alguém morrer, não em tempo de calma mas de rija ventania! [23].


A esta tirada bem humorada de Sócrates responde Cebes:


Faz, pois, de conta que somos uns medrosos, Sócrates, e trata de nos dar ânimo ... ou antes, que não somos nós os medrosos, e sim uma certa criança que existe talvez no íntimo de cada um de nós e a quem todas essas histórias apavoram. É a ela, pois, que deverás convencer a não recear a morte como se fosse um papão! [24].


As duas passagens que transcrevemos permitem-nos, desde já, fazer um comentário.

Há nestas linhas uma finura psicológica que, aliás, Platão demonstra noutros diálogos. A. Jeannière tem razão ao afirmar o interesse de Platão pela psicologia[25].É evidente que o filósofo não possuía no seu tempo os conhecimentos científicos que lhe permitissem ir mais longe neste campo.

Segundo o nosso parecer Platão dá-se conta da dificuldade dos argumentos racionais em tranquilizar o espírito humano, ou seja a racionalidade choca com o que há de mais profundo no espírito representado pelo inconsciente.

O filósofo apercebe-se dos terrores que se albergam no espírito, do lado irracional desse mesmo espírito que lhe faz lembrar uma eterna criança que tem a sua morada no homem, qualquer que seja a sua idade.

Platão não tem as bases teóricas para dar uma resposta dentro dos padrões da nossa época. Mas não deixa de ser pertinente a explicação que adiantou. E é pertinente, em boa parte, na medida que esclarece a filosofia platónica à luz dos quadros mentais e culturais da sua época.

Ora se existe uma criança medrosa em Cebes e seus companheiros, como proceder então? Segundo Sócrates, se tal acontece, é portanto necessário «fazer em cada dia encantamentos» [26] a essa criança até o pavor desaparecer.


E onde iremos nós, Sócrates, arranjar um virtuoso nesse tipo de encantamentos, se o facto é que nos vai deixar?» [27]


pergunta Cebes.

A resposta a esta pergunta é extremamente interessante como veremos já a seguir.

Se Sócrates vai deixar nesse dia os seus companheiros então, segundo o filósofo, é necessário procurar o encantador pela Hélade e pelos países bárbaros, valendo a pena fazer todos os esforços para o encontrar. Todavia, diz ainda Sócrates:


será bom que o procureis também entre vós: pois talvez não seja fácil descobrir quem, melhor do que vós, possa desempenhar esse papel. [28]


Vamo-nos deter um pouco sobre as últimas passagens que transcrevemos.

Para libertar as pessoas dos terrores que as assaltam é necessário um encantador. E é a partir daqui que se abre a parte mais interessante desta digressão a qual podemos sintetizar nos três pontos seguintes:

  1. encontrar um encantador vai ser difícil porque Sócrates morrerá nesse dia;
  2. se assim é, então procure-se um encantador por terras da Hélade e dos bárbaros;
  3. mas o melhor é procurar o encantador, segundo o aviso de Sócrates, em cada um daqueles que constituem o círculo dos seus discípulos.

Explanemos, agora, para uma melhor dilucidação do tema, cada um dos pontos que acabámos de apresentar.

Quanto ao primeiro ressalta de forma clara que Sócrates é identificado com um encantador, ou seja, no contexto do Fédon é visto como aquele que possui o poder de dissipar os terrores existentes no espírito humano.

No segundo, a morte de Sócrates, a ter lugar no dia em que decorre a conversa, vai implicar a procura daquele que o substitua na sua missão. Mas importante, igualmente neste ponto é a menção dos países bárbaros nos quais é possível encontrar encantadores.

Platão não desconhece que as artes do encantamento têm, uma das origens exactamente fora da Grécia, assim como não desconhece a sua importância na mentalidade dos seus compatriotas.

O último ponto que assinalámos, constitui em nossa opinião o mais relevante de toda esta digressão que ocorre no Fédon. Como vimos, para Sócrates será difícil encontrar melhores encantadores do que os seus próprios discípulos. Ora, qual é o significado desta atitude?

O filósofo surge como o encantador por excelência: ele é o herdeiro e o substituto, podemos dizê-lo, do xamane.

Nesta perspectiva a filosofia é agora o discurso do encantamento.

Reforçando o que já dissemos anteriormente, podemos ver que Platão não defendeu a necessidade da existência dos xamanes na medida em que a preparação do filósofo o levará a libertar-se, a si e aos outros dos terrores que os assaltam.

O Fédon nas passagens apresentadas coloca por um lado a analogia entre o filósofo e o xamane e por outro a consciência aguda do lado irracional do espírito com a sua resistência aos argumentos de ordem racional.



4. Filósofos e xamanes

Apresentaremos nesta última parte a conclusão geral do nosso trabalho. Ao longo das páginas anteriores, nas observações que fomos fazendo aos textos do Cármides e do Fédon, esboçamos, em boa parte, a conclusão que se vai seguir.

Tentaremos, com base no que foi exposto, fazer ressaltar, na medida do possível, o que pretendemos defender neste ensaio.

Primeiramente convirá atentar na distância que separa o Cármides do Fédon, a qual, com alguma probabilidade, pode ser estimada em cerca de 15 anos.

Durante este período, Platão aprofundou alguns temas, introduziu modificações salientes na sua filosofia e manteve, por vezes, a mesma linha nalgumas questões.

Quanto ao encantamento não há diferenças notáveis entre os dois diálogos, todavia será útil apontar duas que não são fundamentais:

  1. sob o ponto de vista formal no Cármides a encantação é apresentada através de um discurso fictício de Sócrates enquanto no Fédon a mesma personagem a apresenta como uma indicação ou exortação aos seus ouvintes;
  2. o Fédon apresenta a encantação com um alcance mais amplo do que o Cármides: no primeiro dissipa os terrores, no segundo produz uma virtude.

*


* *


Abordemos, agora, um problema mais amplo e que constitui o fulcro da nossa questão. A Academia teria constituído uma comunidade iniciática? Platão com a sua obra e o seu ensino oral visaria essencialmente um grupo fechado, com as características da escola pitagórica?

As perguntas são equivalentes e têm a sua razão de ser. Apoiados em passagens, algumas das quais examinadas por nós, alguns autores têm defendido a tese segundo a qual a Academia foi um círculo iniciático. [29]

Para respondermos às perguntas que colocamos temos de ir para além do Cármides e do Fédon numa apreciação global da actividade do filósofo.

A questão não é linear; aliás pouco há de linear em Platão.

No nosso entender, nem a obra escrita, nem o ensino oral do filósofo levam a concluir por uma actividade própria de um círculo de iniciados.

As alusões ao xamanismo, cuja grande base é fornecida pelo Cármides e pelo Fédon têm outro significado já esboçado em páginas anteriores deste trabalho.

O caminho trilhado por Platão neste campo é simultaneamente complexo e delicado.

Platão não faz a apologia do xamanismo no sentido de restaurar ou de considerar que o filósofo deva ser um xamane como o Abáris dos Hiperbóreos.

Por outro lado Platão não considera, em nossa opinião, o xamane como personagem sem interesse que deva ser arredado como um embusteiro.

Platão, segundo o nosso parecer, pretende mostrar a filosofia como tendo um papel tão prodigioso como o teve o xamanismo. Há, por assim dizer, a dessacralização do xamanismo surgindo a filosofia, pelo seu papel como a herdeira directa dessa corrente.

Os historiadores Cornford e Dodds puseram a tónica na longa caminhada da filosofia desde os seus inícios, mergulhados num saber antigo assim como nos elementos irracionais que acompanham o novo saber.

Segundo nos parece não há um ponto de ruptura entre a filosofia que surge com Tales de Mileto e sabedoria que lhe é anterior. Mas relevante é o facto de o antigo e novo saber percorrerem por vezes caminhos paralelos, outras cruzarem-se, quase sempre harmoniosamente.

As passagens dos dois diálogos que analisámos parecem indiciar que o filósofo grego, como defendeu Cornford, é um sucessor do xamane [30]. E por aquilo que já dissemos, poderemos afirmar que a marcha da Razão é acompanhada por elementos tradicionais. Tal é visível em Platão assim como o é nalguns pré-socráticos.

No Fédon o filósofo fala do palaios logos, ou seja, da antiga tradição [31].

De facto, em vários lugares da sua obra, Platão refere-se com respeito a personagens antigas ou modernas ligadas ao velho corpo de saber que ele vai utilizar ou adoptar [32]. E, em várias passagens, a utilização desse corpo de saber é clara, enquanto noutras, como as analisadas neste texto, ressalta uma profunda analogia.

Num caso como no outro, saliente-se, são as marcas da tradição que estão presentes na obra platónica.


*


* *


Regressemos ao tema mais restrito do encantamento e vejamos, em breve apontamento, uma concepção ligada a este domínio.

Na segunda metade do século V punha-se a tónica no poder da palavra e na sua capacidade de enfeitiçar os ouvintes.

É o começo do triunfo da Rétorica, do poder da palavra, a qual no dizer do sofista Górgias é capaz de acalmar uns sentimentos e de exacerbar outros [33]. A palavra era assim pharmakon, possivelmente no duplo sentido de remédio e de veneno [34].

A poesia, segundo a concepção de Górgias, é capaz de enfeitiçar o leitor ou o ouvinte. Neste ponto de vista a poesia contém uma certa magia a qual seduz aqueles que dela se aproximam [35].

Platão foi um adversário de Górgias, como é sabido. Mas não deixa de ser interessante notar-se, no tema que tratamos um certo paralelismo entre os dois pensadores. Há uma influência de Górgias, segundo pensamos, naquele que foi o seu grande adversário [36].

Estas considerações mostram-nos que o encantamento, a magia, por um lado constituem objecto de reflexão na segunda metade do século V e por outro apresentam Platão como não alheado do clima intelectual que lhe estava próximo.

Entremos, agora, na parte final desta conclusão.

Diremos que dos textos analisados ressalta, vamos repeti-lo uma vez mais, que o melhor encantador é o filósofo e assim a filosofia é o discurso do encantamento. Mas como vimos, igualmente, o filósofo não é um encantador à maneira tradicional.

A filosofia é a herdeira de uma sabedoria e de um comportamento, o qual teve um lugar proeminente noutras épocas, embora os seus prolongamentos, como é patente, cheguem até ao templo de Platão.

A analogia entre o xamane e o filósofo é que este pode desembaraçar do medo não só os outros como a ele próprio. A filosofia em Platão é sabedoria, e um dos seus objectivos é o de libertar aquele que trilha o caminho da filosofia dos vários terrores que o assaltam. Platão sabe que a existência dos medos mais diversos conduz à falta de liberdade.

Esta linha de pensamento, a qual foi destacada por nós, vai ter uma larga fortuna na Antiguidade. Não só em Aristóteles como nas escolas que lhe são posteriores, encontramos a concepção exposta cada vez com maior ênfase, é certo, da libertação do sábio, da sua importância, portanto, a qual constitui a estrada real para a felicidade [37].




Álvaro José dos Penedos



_____________________

[1] No poema surge a ninfa Circe protegida por animais ferozes que ela encantou. Deu um filtro a alguns companheiros de Ulisses e tocando-os com uma vara transformou-os em porcos.
Ulisses, protegido por uma planta dada por Hermes consegue que a feiticeira liberte os seus companheiros.

[2] Medeia envia os seus filhos com um presente para a sua rival, constituído por um diadema e um manto. Quando esta os coloca, vê-se envolvida por chamas que lhe provocam uma morte horrorosa.

[3] Para uma exposição sobre o xamanismo, veja-se E.R. Dodds, Os gregos e o irracional, Lisboa, Gradiva, 1988 (Trad. De Leonor Santos B. de Carvalho), pp.149-173.

[4]"O ponto importante a salientar é que em comunidades altamente civilizadas não se formam lendas desta natureza à volta de pessoas insignificantes ou de meros charlatães; ou, se se formam os charlatões não conquistam o respeito de homens como Aristóteles e Platão.» (F. M. Cornford, Principum Sapientiae, Lisboa, Gulbenkian, 1975, trad. M. Manuela Rocheta dos Santos, p. 175).

[5] «Há, todavia, um outro xamã grego ainda maior que, sem dúvida, tirou consequências teóricas e acreditava no renascimento. Estou a falar de Pitágoras» (Dodds, ob. cit., p. 158).

[6]«Se o acaso tivesse querido que o único testemunho de Parmenides a chegar às nossas mãos fosse os primeiros versos do seu poema, seria posto à margem como um mágico que se gabava de ter viajado no carro do Sol para além dos portões do Dia e da noite...» ( Cornford, ob. cit., p. 167).

[7] «...temos as próprias palavras de Empédocles, que afirma poder ensinar os seus alunos a parar os ventos e a ressuscitar os mortos e que ele é, ou pensa-se que seja, um deus tornado carne» (Dodds, ob. cit., p. 160).

[8] Dodds, ob. cit., pp. 223-242.

[9] Cármides, Coimbra, I.N.I.C., 1981. Trad., introdução e notas de Francisco de Oliveira, 155 B. Todas as citações deste diálogo são extraídas desta edição.

[10] Cármides, 155 E.

[11] Cármides, 156 D.

[12] Cármides, 156 C-E.

[13] Cármides, 157 A.

[14] Cármides, 157 A.

Aparece pela primeira vez no texto o termo prudência, tradução do grego sophrosyne, que constitui a opção de Francisco de Oliveira, a qual foi seguida por nós.

Estamos perante um exemplo da dificuldade em traduzir alguns termos gregos importantes. O autor aponta algumas traduções para a palavra sophrosyne: «prudência, sensatez, sabedoria, moderação, temperança» (ob. cit., p. 31; n. 1).

Para uma melhor aproximação do sentido de sophrosyne diz Francisco de Oliveira:



... na palavra estão presentes os seguintes elementos:

- saos ou sos «são, salvo, em boa saúde»;

- phron/phren «coração, espírito» como sedes de manifestações passionais e, sobretudo intelectuais;

- syne, sufixo que indica qualidade, e que aparece, no domínio moral, em virtudes como dikaiosyne «justiça».

Saos e phren aparecem no adjectivo sophron, qualitativo que, desde Homero, designa o «são de espírito», especialmente quando se referem ao comportamento de jovens e subalternos. No campo das relações do indivíduo com o corpo social o termo aproxima-se de aidos «vergonha, sentimento de respeito», designando depois, uma actuação digna de aprovação pública.

Assim, o conceito torna-se permeável e será condicionado pelas categorias da ética social e até religiosa, sofrendo eventuais infiltrações de acordo com o prisma das mentalidades das diversas camadas populacionais. (Ob. cit., p. 30).

[15] Quanto à cronologia dos diálogos de Platão veja-se W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, Cambridge University Press, vol. IV, 1977, pp. 39-54. Quanto à colocação do diálogo Protágoras veja-se o nosso livro O pensamento político de Platão, Publicações da Faculdade de Letras do Porto, 1977, p. 133.

[16] Veja-se Werner Jaeger, Paideia, Lisboa, Aster, s/d, (Trad. de Artur Parreira), pp. 939-995.

[17] «Thus the thesis of the mythical Thracian was thoroughly Greek, It is attributed to Hippocrates at Phraedrus 270 c» (Guthrie, ob. cit., p. 164, n. 2).

[18] Quanto ao tema da alma em Platão, veja-se A. Jeannière, Lire Platon, Paris, Aubier, 1990, pp. 217-237.

[19] A primeira viagem de Platão ao sul da Itália e à Sicília realizou-se em 389 ou 388 estando o filósofo de regresso a Atenas em 387. Cerca de 386 fundava a Academia.

Nessa viagem, o filósofo encontrou-se com os pitagóricos em Tarento, encetando uma longa amizade com Arquitas, figura de relevo na primeira metade do século IV.

A partir dessa época assiste-se a uma influência de pitagorismo em Platão: a imortalidade e a salvação da alma e a reminiscência contam-se entre essas influências.

O diálogo Górgias teria sido publicado, em nossa opinião, cerca de 386. Para esta opção veja-se a nossa ob. cit., pp. 145-147.

[20]Cármides, 158 B.

[21] Cármides, 176 B.

[22] R. Burger, The Phaedo. A platonic labyrinth, Yale University Press, New Haven and London, 1984.

[23] Fédon, Coimbra, Minerva, 1988. (Trad., introdução e notas de M. Teresa de Azevedo), 77 D-E. As citações deste diálogo são extraídas desta edição.

[24] Fédon, 77 E.

[25] «... il n’y a jamais en ni sociologie ni psychologie en Grèce, avant lui. Il est donc particulièrement intéressant d’examiner comment ces deux sciences humaines s’annoncent chez Platon». (A. Jeannière, ob. cit., p. 242).

[26] Fédon, 77 E.

[27] Fédon, 78 A.

[28] Fédon, 78 A.

[29] Francisco de Oliveira dá notícias desta interpretação. Veja-se ob. cit., p. 84, n. 19.

[30] Cornford, ob. cit., p. 174.

[31]


A ideia do corpo como prisão da alma, a necessidade de uma prática purificadora que a liberte e redima (assimilada por Sócrates à filosofia, ou seja, ao amor pela sabedoria), ainda a crença na metempsicose ou reencarnação das almas, são tópicos bem conhecidos das doutrinas mistéricas, e em especial do Orfismo e do Pitagorismo, que Sócrates provavelmente visa sob a designação genérica de palaios logos, a «antiga tradição. (M. Teresa Azevedo, ob. cit., p. 22).


[32] Por exemplo, no Ménon, 81 A-B, Sócrates ao introduzir a teoria da reminiscência diz o seguinte:


Os que dizem a verdade e o belo pertencem, por um lado, ao grupo dos sacerdotes e das sacerdotisas, a quem é cometido o cuidado de se dedicarem a prestar contas daquilo que estão encarregados. Por outro lado, dão também argumentos Pindaro e muitos outros poetas, divinos como são. (Trad. de Ernesto Rodrigues Gomes).


No banquete, 201 D, ao falar da sacerdotisa Diotima que transmitiu a Sócrates o discurso sobre Eros diz


que era deveras sabedora destes assuntos e de muitos outros. Foi ela quem, outrora oferecendo sacrifícios aos deuses, consegui protelar por dez anos a praga de peste que viria a assolar os atenienses. (Trad. de Pinharanda Gomes).


[33] Cfr. Górgias, Elogio de Helena, 8.

[34] Cfr. Górgias, Elogio de Helena, 14.

[35] Cfr. Górgias, Elogio de Helena, 10.

Para um melhor esclarecimento deste ponto citemos G. Romeyer-Dherhey:


Plus précisement Górgias, originaire de Grande-Grèce, subit l’influence pythagoricienne et l’on sait que cette secte étudia les effets de la musique: chaque mode musical exerce une action particulière sur l’âme, et possède par la une connotation éthique déterminée. Mais, par-delá la musique, le vocabulaire même employé par. Górgias pour dire l’action de la parole persuasive nous renvoie aux pratiques de la magie, qu’exerçait d’ailleurs déjà son maître Empédocle (...). La persuasion du discours procède par envoûtement des rites et des évocations magiques; le sophiste est sorcier, il possède le mot juste qui jadis faisait mouvoir les pierares et maintenant ouvre les coeurs, les fascine, les guérit». (Les Sophistes, Paris, PUF, 1985, p. 47).


[36] Aproveitamos esta ocasião para falarmos no discurso de Sócrates no Cármides. É um discurso fictício, carácter bem explícito no próprio diálogo. E se voltamos a este assunto é porque existe um procedimento com semelhanças com a sofística.

Há um discurso ilusório, próprio dos sofistas segundo Platão, que é apresentado pelo personagem Sócrates. Há, todavia, dois aspectos que convém mencionar.

É afirmado explicitamente que o discurso é fictício. O leitor do diálogo, neste ponto não fica com dúvidas e não é enganado.

Por outro lado, o discurso fictício proporciona uma digressão através de temas importantes para Platão (encantamento e prudência), digressão essa que se processa de um modo não enganador e não ilusório.
Não deixa de ser interessante notar que o convite para este tipo de discurso parte de Crítias, um discípulo dos sofistas. Mas anotemos, por fim, que o discurso fictício de Sócrates tem levado muitos comentadores a não considerarem como relevante, sob o ponto de vista filosófico, esse mesmo discurso. Como se pode ver não partilhamos desse ponto de vista.

[37] Aristóteles fala da superioridade da disciplina mais filosófica, a qual terá a superioridade sobre as outras. Do mesmo modo o filósofo está acima dos outros homens, não recebendo ordens daqueles que lhe são inferiores (Crf. Metafísica, A, 2).

Ao que nos parece, Aristóteles considera filósofo o homem mais livre na medida em que consagra a uma especulação superior. A posse da filosofia, deste modo, confere a liberdade àquele, que a possui.

Em Epicuro nota-se, claramente, o esforço para libertar o homem dos seus terrores. A sua Física, entre outros pontos, ao negar a possibilidade de interferência dos deuses no mundo tinha como intenção retirar a base teórica aos terrores.

O estoicismo preconiza a independência do sábio em relação a tudo que ele não pode controlar. Deste modo, afastam-se os medos e atinge-se a serenidade.

Os cépticos ao preconizarem a suspensão do juízo pretendiam afastar as tensões e chegar a um comportamento equilibrado.
Este breve apontamento pretende indicar uma das linhas de força da filosofia, a partir de Aristóteles, que se torna mais compreensiva ao levar em linha de conta os factores culturais e políticos da época em que surgiram, tarefa que não pode caber nesta nota.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.