quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Os desígnios de Apolo


Sobre a "Apologia" e o "Críton" de Platão




Uma questão a dilucidar

Dois diálogos de Platão, escritos na sua juventude, a Apologia de Sócrates e de Criton levantam, ainda hoje, problemas delicados de interpretação. Pretendemos nesse trabalho dilucidar a seguinte questão: existe ou não uma dissonância entre os diálogos?

Sejamos mais precisos. O que desejamos saber é se há na Apologia uma rebeldia em relação às leis da Cidade e no Criton uma defesa da obediência a essas mesmas leis. Ora, é fundamentalmente a esta pergunta que se dirige o presente ensaio procurando uma resposta para um tema que não é fácil.

Aproveitemos, ainda, estas linhas introdutórias para referir outra dificuldade presente nos primeiros diálogos de Platão. Como é sabido a Apologia e o Criton pertencem a um grupo designado, por vezes, como diálogos socráticos. Tal designação pretende indicar que os primeiros diálogos de Platão expõem, ou pelo menos apresentam uma forte presença da doutrina socrática.

Não será nossa preocupação o resolvermos este problema. Abordaremos a Apologia e o Criton neste ensaio sem tentarmos discernir o que é pertença de Sócrates ou de Platão.

Anotemos, apenas de passagem, que algumas linhas de força presentes nestes diálogos se prolongam noutras obras de Platão. Mas este ponto não será o fundamental do nosso trabalho.


Uma incumbência da divindade

A Apologia tem como cenário o tribunal de Atenas onde Sócrates faz a sua defesa contra as acusações que lhe são movidas. Esta defesa assenta no sentido que deve ser conferido à sua investigação filosófica. Isto é, Sócrates vai mostrar qual a natureza da sua indagação que o levou a discutir com os políticos, os poetas e os artífices pondo a descoberto a sua ignorância, procedimento esse que o levou a possuir uma série de inimigos.

É importante para a compreensão deste assunto a eguinte passagem da Apologia:


«...os que assistem a estas discussões pensam sempre que eu sou sábio naquelas matérias em que demonstro a ignorância dos outros. Tal sabedoria, Atenienses, possui-a certamente o deus, que, muito provavelmente, quis significar com o seu oráculo que a ciência do homem é de escasso ou nulo valor. E é evidente que, ao falar de Sócrates, se serviu apenas do meu nome para me apresentar como exemplo, como se dissesse: "O mais sábio de vós, ó mortais, é aquele que, como Sócrates, reconheceu que o seu saber é, na verdade, inteiramente desprovido de valor". Estas investigações, continuo ainda hoje a realizá-las pela cidade, interrogando, de acordo com o oráculo de deus, todo aquele cidadão ou estrangeiro que me parece ser sábio. E, quando chego à conclusão contrária, é em defesa do deus que demonstro a sua ignorância»[1].


Acusado de introduzir novas divindades e de corromper a sua juventude Sócrates defende-se apresentando a origem e o significado da sua indagação. É relevante nesta passagem uma concepção de sabedoria que entronca, por sua vez, no corpo de saber mais antigo. Dois pontos podemos destacar para uma melhor compreensão de um tema importante para a nossa interpretação:

  • a sabedoria só pertence à divindade;
  • Sócrates é o porta-voz do deus

Os pontos destacados, como já dissemos, remetem-nos para o mais antigo corpo de saber que encontramos presente, igualmente, nalguns pré-socráticos. Na passagem que estamos a analisar não encontramos qualquer inovação quanto à natureza do saber, isto é, encontramo-nos perante uma continuidade.

De facto, a sabedoria anterior a Tales de Mileto defendia a longa distância entre o deus e o homem no respeitante ao saber. E a filosofia pré-socrática, através de alguns dos seus representantes, irá acentuar a mesma tónica.

O que dissemos mostra o cruzamento entre a religião e a filosofia bem patente, ao que nos parece, na Antiga Grécia até aos inícios do século IV a.C. época em que são escritos a Apologia e o Criton.

Embora os dois pontos que destacamos estejam ligados entre si, o segundo é, porém, o mais importante para os objectivos da nossa indagação

A diferença entre o saber divino e o saber humano é fácil de compreender devido ao abismo que separa os deuses dos mortais. Porém, o tema do filósofo como porta-voz do deus, introduz, todavia, uma dimensão que convém analisar, embora, com brevidade.

Ser representante de deus, no campo do saber é algo de complexo. No caso de Sócrates, aquele que nos interessa neste momento, com base na passagem que vimos analisando, esta posição significa o seguinte:

  • o saber do deus é o mais importante;
  • um preceito do deus pode ser difundido entre os homens;
  • aquele que difunde o preceito divino é um instrumento do deus;
  • o homem que é um instrumento divino não é importante por ele próprio na medida em que recebeu uma determinada missão: importante é apenas o deus.

A partir dos traços que assinalámos compreende-se agora melhor qual é o núcleo da defesa de Sócrates.

Sócrates não se considera culpado dos crimes que lhe são imputados porque a sua acção não é mais do que a obediência a um mandamento de Apolo

Ao considerar que é um instrumento ou um porta-voz do deus, Sócrates prolonga uma tradição: alguns pré-socráticos apresentaram-se desempenhando um papel análogo àquele de Sócrates.

A filosofia surgia como algo de tão importante aos olhos dos seus cultores que as palavras do filósofo ou eram ditadas por um deus ou podiam ter sido proferidas por ele.

Boa parte da filosofia até aos inícios do século IV a.C. para se apresentar como o saber mais elevado, como uma paideia digna de crédito, devia trazer, portanto, a chancela da divindade. E o filósofo nesta esteira comporta-se como um homem divino na perspectiva da concepção grega deste termo.

Todas estas considerações, em que nos alongamos, irão ajudar-nos, assim ao esperamos, a analisar outra passagem da Apologia:


«...dir-vos-ei mais, Atenienses, tanto faz que acrediteis em Ânito como não, podeis absolver-me ou não me absolver, mas a minha atitude no futuro não será modificada, nem que eu tenha de sofrer mil vezes a morte» [2].


As palavras proferidas por Sócrates têm sido encaradas, por vezes, como um desafio, como uma rebelião contra as leis. Todavia, ao que nos parece, não é esta a leitura correcta da passagem, se levarmos em linha de conta o contexto em que está inserida.

Se atendermos bem, quaisquer que sejam as circunstâncias, a atitude de Sócrates terá sempre de ser idêntica em todos os momentos.

De facto, se Sócrates tem uma missão a cumprir, missão essa, convém sempre relembrar que lhe foi confiada por Apolo, ela tem de prosseguir sob pena do filósofo cometer uma impiedade.

A relação entre Sócrates e Apolo poderá verificar-se, em nossa opinião, num episódio extremamente curioso. Quando o filósofo tem de escolher a pena para o crime que é acusado vai afirmar que ele é digno de ser alimentado a expensas da cidade [3].

Não se trata, como se poderia pensar à primeira vista, de uma bravata ou de uma atitude desdenhosa em relação ao tribunal.

Em nossa opinião, o que é expresso é a consciência de Sócrates em considerar-se praticamente um homem divino [4]. Mandatado pelo deus, Sócrates tem de comportar-se dentro dos parâmetros que já foram assinalados por nós.

Pensamos que toda a esta série de considerações abrem o caminho para a interpretação global da Apologia e do Criton que ensaiaremos na parte final deste trabalho.


A Filosofia e as Leis

Debrucemo-nos, agora, sobre a diálogo Criton, que, como veremos mais tarde, completa a Apologia. Escrito logo após este último, o Criton descreve os momentos de Sócrates na prisão e o esforço do seu amigo Criton em persuadi-lo a evadir-se.

O Criton, como já tivemos ocasião de dizer, constitui uma peça importante para o nosso trabalho na medida em que é apontado como diálogo em que surge a defesa das leis da Cidade.

Uma breve análise ao diálogo Criton prepara-nos para o caminho, assim o esperamos, para responder à questão se existe ou não uma contradição nos dois diálogos mencionados.

Numa primeira leitura a Apologia pode surgir como mais agressiva apresentando um Sócrates desdenhoso da Cidade enquanto o Criton pode transmitir a sensação de um diálogo sereno no qual se faz a defesa da obediência às leis da Cidade.

Boa parte dos comentadores de Platão não tem posto em relevo, ao que nos parece, a falsa acomodação representada pelo Criton. Este diálogo, porém, representa uma crítica contundente ao regime democrático, crítica essa que Platão manterá, pelo menos, até à República. De facto, uma das linhas de força que podemos destacar consiste em não considerar o parecer da multidão como critério de verdade:


«Quem dera, Criton, que a multidão fosse capaz de realizar os maiores males, contando que fosse igualmente capaz de realizar os maiores bens! (...) o que faz é pura e simplesmente ao acaso» [5].


Sendo assim, é necessário utilizar outro critério para avaliar da justeza dos argumentos avançados por Criton a favor da evasão de Sócrates:


«Os princípios que até aqui afirmei não posso agora repudiá-los, só porque me encontro nestas circunstâncias. A verdade é que eles me parecem exactamente os mesmos e continuo a venerá-los e honrá-los como antes, (...) convence-te de que não me verás ceder às tuas razões, nem que a força da maioria tente assustar-nos, como a crianças, com o espantalho de males piores do que os actuais, ameaçando-nos com prisões, mortes, confiscos de bens» [6].


O Criton não fala da missão divina levada a cabo por Sócrates. É provável que Platão considerasse tal facto como adquirido com a Apologia. Mas não deve passar despercebido que a análise que Sócrates vai realizar tem por base os princípios que sempre defendeu. Ao longo do Criton dois pontos podem ser realçados na perspectiva do tema que nos interessa. O primeiro diz respeito ao elogio da Pátria:


«...a Pátria é algo mais precioso, mais venerável, sagrado e digno de apreço do que uma mãe, um pai e todos os antepassados» [7].


A passagem que citámos põe a tónica na importância da Cidade, no respeito que se lhe deve manifestar, o que é importante para afastar (ou tentar afastar) as suspeitas que podiam existir em relação a Sócrates.

O segundo ponto que desejámos mencionar pode ser ilustrado pela seguinte passagem:


«Obedece-nos, pois, Sócrates, a nós [as Leis] que te criámos, e não prezes os teus filhos, a tua vida, ou o que quer que seja, mais do que a justiça, para que, ao chegar ao Hades, possas alegar isto em tua defesa aos que ali governam (...). Se deixares esta vida agora, morrerás vítima de uma injustiça, praticada não por nós, as Leis, mas pelos homens; se, pelo contrário, te evadires assim vergonhosamente, responderes à injustiça com a injustiça e ao mal com o mal (...) a nossa cólera perseguir-te-à durante a vida...» [8].


Os princípios que Sócrates sempre defendeu são aplicados para se saber se é justo ou não evadir-se do cárcere e através da análise a que procede, Sócrates conclui que a evasão representaria um atentado contra as leis: portanto, a fuga é injusta, logo, impossível.

Então como conciliar, se o é possível, os dois diálogos? A breve análise a que procedemos prepara a resposta à questão.

A primazia dada à filosofia no Criton estabelece, em nossa opinião, a ligação com a Apologia: assim, estabelece-se nos dois diálogos uma linha contínua. A acção de Sócrates junto dos seus concidadãos assim como a defesa no tribunal tem como base a filosofia, e na prisão para saber se o evadir-se é justo ou não será ainda a filosofia, e não a opinião da maioria, a fornecer a resposta.


Os desígnios de Apolo

A Apologia e o Criton reflectem, em boa parte, a problemática e a actuação próprias dos finais do século V. Tendo como pano de fundo a crise aberta pela Guerra de Peloponeso deve-se pôr em relevo o empenhamento do cidadão nos negócios da Cidade assim como a sua relação com as leis.

Em Atenas, durante o regime democrático era normal o interesse e a actividade política do cidadão. Assim, não é para admirar que a Apologia Sócrates se veja obrigado a justificar o seu alheamento em tal matéria, alheamento esse que poderia levantar suspeitas quanto ao seu respeito pela Cidade.

A justificação dada por Sócrates assenta na sua falta de tempo para se dedicar à actividade política, E se é certo que o filósofo se move com dificuldade em tal terreno é certo, também, que a sua tarefa específica lhe retira disponibilidade [9].

Nesta linha é pertinente notar-se que Platão, mais tarde, continua a adoptar a mesma postura perante a actividade política. O filósofo é desajeitado num campo onde proliferam os jogos e as intrigas: o Sócrates da Apologia assim como o Platão que escreve a República encontram-se afastados da vida política quotidiana por razões que são substancialmente as mesmas.

O afastamento de Sócrates de uma actividade própria do cidadão ateniense, como já dissemos, podia suscitar dúvidas quanto ao seu respeito pelas leis da Cidade. Ora, este era um ponto importante nas concepções da Segunda metade do século V, tornado mais sensível pela crise que se abatia sobre a polis desde os finais desse mesmo século.

A crítica dirigida àquele que conspira contra a Cidade pode observar-se com toda a clareza numa passagem célebre da Antígona de Sófocles:


«se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé,
grande é a cidade; mas logo a perde quem por audácia incorre no erro. Longe do meu lar
O que assim for!
E longe esteja dos meus pensamentosO homem que tal crime perpetrar!»
[10].


Sendo assim, não é para espantar que o Criton insista no respeito pelas leis da Cidade. Mas a Apologia e o Criton, como já dissemos, não apresentam versões diferentes quanto a esta matéria.

Há nos dois diálogos, que estamos a examinar, de uma forma subjacente, o traço de uma fronteira que nos permitirá descortinar o núcleo da concepção que é defendida.

A Cidade surge com o poder sobre a vida e os bens do cidadão assim como impõe a este um conjunto de obrigações cívicas. Mas as convicções religiosas, o que levanta problemas delicados, encontram-se igualmente sob a alçada da Cidade.

Como pudemos ver na Apologia Sócrates comparece no tribunal e é condenado pelas suas ideias religiosas assim como pela sua actuação junto da juventude. E, embora, no Criton surja a possibilidade de fuga, Sócrates permanecerá na prisão para cumprir uma pena que ele, todavia, considera injusta. É, assim, claramente aceite o poder da Cidade sobre a vida do cidadão.

Na Apologia assim como no Criton, conforme o que já foi analisado, a actividade filosófica entendida na perspectiva de Sócrates permanece inalterável através de todas as circunstâncias.

Ora, como é que tudo isto é possível?

A resposta está no facto de a Cidade não ser considerada com o poder de interferir em determinado plano e em determinado tipo de actuação.

Se é apresentada a concepção segundo a qual o saber pertence à divindade e que esta pode incumbir um homem, no caso concreto Sócrates, de uma missão cujo núcleo é a transmissão de um mandamento, então estamos perante um plano que está acima dos homens e da Cidade.

Sendo assim, Sócrates tem de cumprir uma missão que, embora, se processe no interior da Cidade tem uma origem divina.

Subjacente à Apologia descortina-se um conflito, já antigo, entre o que se denomina lei não escrita (ou divina) e a lei [11].

Encontramo-nos, segundo a nossa opinião, perante a grande questão que os dois diálogos procuram resolver. É aqui que vamos encontrar a resposta ao problema que levantámos. E ainda, em nossa opinião, a Apologia e o Criton vão resolver este problema, de uma forma original, embora, não isenta de alguma ambiguidade.

Sócrates, tendo de obedecer ao deus, deve continuar a filosofar, mesmo que isso lhe custe a vida. Mas se se deve respeitar a lei divina, por outro lado não se deve subverter as leis da Cidade.

Pensamos que neste momento se torna clara a posição de Sócrates na Apologia e no Criton: acusados por três cidadãos comparece no tribunal, é condenado, embora o considere de uma forma injusta e permanece na prisão aguardando a morte, não obstante ser possível a sua fuga.

É nesta perspectiva que o Criton é fundamental para a compreensão de todo este problema, embora prolongue a Apologia, como já tivemos ocasião de dizer. É possível dizer que a Apologia não fosse suficientemente clara quanto à relação do filósofo com as leis da Cidade. O Criton representa um esclarecimento quanto a este ponto e está preocupado em mostrar a actividade filosófica de Sócrates como não representando uma subversão para a Cidade.

Como já vimos, o Criton ao fazer a apologia da obediência às leis considera, como é óbvio, uma falta grave o desrespeito às leis da Cidade. Sendo assim, condenado à morte o filósofo deve aceitar esta decisão, não devendo fugir, o que seria um atentado à Cidade, ou seja, uma subversão às suas leis.

Neste momento, ao chegar-se ao final deste trabalho poder-se-á dizer que a solução para um tema complexo é ela própria complexa e mesmo heterogénea, se a nossa leitura estiver correcta. Mas podemos dizer que a complexidade nasce, em boa parte, da defesa realizada por Platão para mostrar, por outro lado, a importância da missão de Sócrates, e por outro lado, o seu comportamento exemplar de cidadão.

Surge, assim, uma dupla obediência, ao deus e à Cidade, que reduz ao mínimo o conflito. Ao obedecer ao deus, Sócrates é alvo de um condenação e na perspectiva dos dois diálogos analisados essa condenação tem de ser suportada para salvar as leis da Cidade. Em boa parte, o que podemos verificar é que Sócrates dá à divindade o que lhe pertence e à Cidade o que lhe é igualmente devido

E assim, se cumpriam os desígnios de Apolo.


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[1] Platão, Apologia de Sócrates. Criton, Coimbra, I.N.I.C., 1984. Introdução, versão do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulquério, 23 A-B.
As citações destes dois diálogos são extraídos desta edição.
Indiquemos, ainda, as seguintes edições portuguesas destes diálogos de Platão:
Êutifron. Apologia de Sócrates. Citron. Tradução, introdução e notas de José Trindade dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1985;
Apologia de Sócrates. Tradução de António Monteiro e notas de Luís Martins, Sintra, Mar-Fim, 1988;
Apologia de Sócrates. Tradução, prefácio e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães Editores, 1988.

[2] Apologia, 30 B-C.

[3] Apologia, 36 D-37 A.

[4] Significativo desta consciência são as seguintes passagens:

«Pois se me fizerdes morrer, não achais facilmente outro homem como eu ligado a esta cidade pelo deus...» (Apologia, 30 E);

«Ora que eu sou realmente um homem dado pelo deus à cidade...» (Apologia, 31 A B.).

[5] Criton, 44 D.

[6] Criton, 46 B-C.

[7] Criton, 5

[8] Criton, 54 B-C.

[9] Sócrates dedica-se a tempo inteiro à missão e a prova consiste na sua pobreza. Mas não deixa de afirmar, também, perante os juízes que se se tivesse dedicado à actividade política, devido ao seu sentido de justiça, já teria morrido! (Cfr., Apologia, 31 A-A E ).

[10] Sófocles, Antígona, Coimbra, I.N.I.C., 1984. Introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, vv. 369- 377.

[11] Manuel de Oliveira Pulquério apresenta um cotejo, muito sugestivo, entre a Antígona de Sófocles e o Criton:

«Antígona é a jovem heroína que se revolta contra o édito do soberano Creonte, seu tio, que proíbe dar sepultura a Polinices, irmão de Antígona, morto em combate contra Tebas. Ao prestar honras fúnebres ao irmão, Antígona sabe que infringe a lei do Estado, mas fá-lo em nome da obediência a leis mais altas, as leis divinas (...).»

Divergirão, em matéria tão importante, os pensamentos de Sócrates e Sófocles? Parece que não. Recorde-se que, no caso de Sócrates, não há oposição entre as leis do Estado e as leis divinas, em vigor no Hades. «A obediência não se encontra, assim, dilacerada entre dois deveres» (ob. cit., p.61).
Como se poderá verificar pelo nosso texto não seguimos a conclusão de Oliveira Pulquério.




©Álvaro José dos Penedos


"Os Desígnios de Apolo" foi retirado de Os Dias de Deméter.


Obs.: este ensaio também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Ensaios e Estudos ou directamente através deste link.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma página dessa natureza é, realmente útil ao público que aprecia a filosofia antiga. Quanto à Apologia e ao Críton, são dois Diálogos que valem a pena confrontar com o primeiro livro da República. Para ser honesto, sou muito apreciador do pensamento de Trasímaco, mas sem obviamente ser um partidário da injustiça. Se for o caso, identifico-me como socrático, mas presto muita atenção ao discurso realista daquele sofista. A realidade crua e quotidiana é, de facto, muito distinta dos nossos ideais. A decisão de Sócrates no tribunal é, sem dúvida peremptória e assaz moralista. Estou convencido de que Sócrates é um teocentrista, sem contudo ser um teocratista, de que ele é um racionalista e não um asceta. Mesmo diante do tribunal e do cadafalso, a sua atitude fora racional, a sua aparente religiosidade fica apenas em segundo plano.
Mas, quanto à questão de Sócrates e as leis da cidade, penso que se trata de uma espécie de dilema. Situação, mais ou menos, parecida é de Êutifron no Diálogo que leva o seu nome: se acusa o pai está a acusar um assassino (uma acção correcta) e simultaneamente a cometer uma ignomínia. E se não acusa o pai, comete uma omissão, mas evita uma ignomínia. Afinal, ele próprio diz que piedade é punir o ímpio e impiedade é deixá-lo impune (Êut. 5d-e).
O drama de Sócrates no tribunal se concebido em sentido lógico, também leva a um paradoxo. Aliás, Sócrates passou a vida a promover paradoxos e não economizou sequer os seus últimos momentos. A opção de obedecer ao deus e não aos homens (Apol. 29d), certamente acarreta a não poucas consequências. Tanto Sócrates como Platão sabiam que a linguagem do divino e mesmo a linguagem filosófica (ou lógica) conduzem a resultados aparentemente estranhos. Enfim, penso que o Críton pode ser considerado como um complemento da Apologia, a despeito de qualquer inconveniente que possa surgir. É que se tratarmos os próprios Diálogos com o rigor dialéctico que eles normalmente nos oferecem, corremos o risco de neutralizá-los. Enfim, Sócrates, ao que parece, cumpriu a sua meta, não cometeu suicídio, tal como às vezes se pretende (PHILONENKO, 1999: 68), nem qualquer covardia. O dilema ou paradoxo que lhe ocorrera em pleno julgamento é apenas de carácter lógico, o qual não invalida o bom-senso, ou seja, a arete, com a qual ele muito se preocupou.

Lutecildo Fanticelli