terça-feira, 12 de junho de 2007

Entrevista ao Prof. Doutor Álvaro Penedos
conduzida pelo Prof. Doutor Luís Araújo


(P.) 1 – Qual o lugar que a Filosofia Antiga legitimamente ocupa na historia do pensamento ocidental?

(R.) Quanto à questão que me coloca direi, em primeiro lugar, que a Filosofia nasce na Grécia na passagem do séc. VII para o séc. VI a.c. com Tales de Mileto; passado pouco tempo, no séc. IV a.c., com Platão e Aristóteles a que se deve juntar as escolas oriundas do circulo Socrático a Filosofia está, francamente consolidada.

Em segundo lugar, lembraria que a Filosofia Antiga só termina “oficialmente”, no séc. VI a.c., com um édito do imperador bizantino Justiniano, o qual encerra as escolas de filosofia pagã.
Com o édito do imperador fecha a Academia de Platão que existiu, caso espantoso, desde o séc. IV a.c. até ao séc. VI d.c.

A Filosofia Antiga influenciou, sempre, a marcha do pensamento ocidental ou de uma forma indirecta ou directa. É próprio da natureza da Filosofia insinuar-se, eu diria, por vezes de forma insidiosa nas instituições e nas leis dos Estados.

A persistência da Filosofia Antiga pode ser rastreada através de duas maneiras, para além daquela a que me referi:

1- a primeira surge quando um filosofo ou uma escola se debruça sobre um pensador anterior, adaptando e aproveitando alguns aspectos. Com isto quero dizer o seguinte: é perfeitamente legitimo que um filosofo, retire o que considera fundamental para a sua teoria e que adapte e transforme o que chegou até ele oriundo, por vezes, de épocas muito anteriores. Eu diria que essa é uma das tarefas da Filosofia: adaptar doutrinas que lhe são anteriores, à luz das suas preocupações e dos padrões da época em que vive.

2- a Filosofia Antiga, sobretudo nos sécs. XIX e XX , está presente nos trabalhos dos historiadores da Filosofia. Uma referencia a um trabalho extremamente assíduo; a edição critica dos textos antigos (gregos e romanos) e a compilação dos fragmentos, os quais constituem na maior parte dos casos, o que poderemos saber de pensadores antigos.

O historiador preocupa-se em transmitir, com o rigor que lhe é possível, as doutrinas dos filósofos. Quanto mais afastado está da época dos filósofos que vai estudar, maior é a dificuldade com a qual se defronta. A Historia da Filosofia, deve atingir na minha opinião dois objectivos:

1- um deles consiste em colocar os filósofos nos seus respectivos contextos históricos, mostrando, portanto os padrões culturais e mentais da época pondo a claro a importância desses mesmos padrões que deixam marcas nas próprias doutrinas. Quanto a mim a Filosofia não é intemporal e por isso reflecte, pelo menos em parte, preocupações e problemas de uma época.

Este objectivo é útil e importante porque mostra uma dinâmica ao longo dos séculos, por um lado, e por outro mostra-nos que a Filosofia é compreensível à luz do contexto na qual nasceu.

Repetindo-me um pouco, mostra que as diferentes épocas, têm características próprias, o que nos obriga a levar em linha de conta a ideia de que a Filosofia não é imune, para bem dela, à época em que surge.

Tal atitude ajuda-nos, também a compreender que, mesmo dentro da mesma civilização não encontramos uma uniformidade mas sim um trajecto que vai oferecendo aspectos diferenciados. Todavia, direi também, que a Filosofia não é apenas um reflexo de um determinado momento de uma sociedade.

Gosto de acentuar o ponto anterior porque pode auxiliar-nos a olhar para as civilizações não ocidentais com as suas diferenças em relação à nossa e a incitar-nos para a sua compreensão. E mais uma vez, neste caso, a existência de padrões culturais e mentais diferentes, não deve ser considerado como algo de estranho mas simplesmente diferente, o que nos deve levar a respeitar a diferença e a não criticar por esta mesma razão.

2- A Historia da Filosofia não é propriamente um trabalho de Filosofia. O historiador da Filosofia não escreve uma obra filosófica, escreve sobre aqueles que filosofaram; claro está, que um historiador pode a ser também um filósofo.

De uma forma geral as obras da Historia da Filosofia, incluindo, obviamente a Antiga, são importantes, porque fornecem informação, porque são instrumentos para aqueles que pretendem filosofar. Tal tarefa, talvez modesta, é importante não só para a Filosofia, mas também para a Cultura no seu sentido mais lato.

Termino esta resposta com uma breve consideração. Os trabalhos de Historia da Filosofia ao incidirem sobre um determinado pensador põem a claro o que é a marcha de um pensamento, as dificuldades e, por vezes, as hesitações que se encontram ao longo da carreira de um filósofo. É uma lição para os aprendizes da filosofia. Lembro-me de obras excelentes, nas quais encontramos esta preocupação, sobre Platão e Aristóteles e que me marcaram de uma forma decisiva.


(P.) 2 – Como avalia o desenvolvimento da investigação científica que se pratica hoje em Portugal em torno da Filosofia Antiga?

(R.) Se me permite, Luís Araújo, recuaria alguns anos para falar da docência e da investigação na área da Filosofia Antiga.

Lembro-me bem da situação da disciplina, designada na altura, Historia da Filosofia Antiga na década de sessenta, do século passado quando fui indicado para a sua regência, na FLUP.

Era uma disciplina que se encontrava no Curriculum do Curso de Filosofia, praticamente, por tradição; era uma disciplina claramente secundária. Há uma discussão, ao longo do tempo, sobre o papel e a importância da Historia da Filosofia nos estudos filosóficos; porém, nessa discussão a Filosofia Antiga saía bastante maltratada.

Acrescia ao que mencionei uma produção nacional extremamente pobre: poucas traduções fiáveis dos textos gregos, escassos artigos e livros de Filosofia Antiga. Deste período guardo dois nomes, importantes neste domínio: Luís Ribeiro Soares, que foi o meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa, a quem devo o meu interesse pela Filosofia Antiga. Victor de Matos, professor na Faculdade de Letras de Coimbra, docente e investigador notável, viu a sua carreira precocemente interrompida por um brutal acidente de viação. É com profundo respeito que relembro estas duas figuras com quem convivi.

Foi necessário um esforço persistente, e mesmo algum sacrifício, por parte de alguns professores da Universidade para que a disciplina mudasse, de facto, de estatuto.

Penso que a década de oitenta marcou a grande viragem no estudo da Filosofia Antiga a qual na Universidade se tornou uma disciplina importante no Curriculum do Curso de Filosofia. Deve-se acentuar que a partir dessa altura encontramos excelentes traduções de textos gregos (com estudos introdutórios e notas) assim como surgiram, em bom número, trabalhos de investigação e de divulgação.

A parte da filosofia grega que foi mais trabalhada incluiu os pré-socráticos, os sofistas e Platão. A edição de obras aristotélicas assim como os estudos sobre Aristóteles foram ainda escassos mas, neste momento, edições de obras e trabalhos sobre o estagirita estão a surgir a bom ritmo.

Neste inicio do séc XXI continua, e penso mesmo, que a cadencia mais acelerada, a produção portuguesa no campo da Filosofia Antiga. Nestes últimos anos há a salientar, e faço-o com muito gosto, o trabalho desenvolvido por uma geração mais nova de professores e investigadores que constituiu a garantia de uma continuidade, e mesmo de uma maior amplitude no campo da Filosofia Antiga. Mencionarei nesta nova geração, apenas, o nosso colega José Augusto Graça que possui já hoje, uma obra notável de divulgação e investigação, nomeadamente na Sofistica.

Também gostaria de dizer, que é importante a investigação no período pós-aristotelico; faço votos para que surja proximamente.

Em conclusão, posso dizer-lhe, Luís de Araújo, que estou, francamente, optimista quanto à docência, divulgação e investigação na área da Filosofia Antiga que hoje, já constitui um domínio de ponta na panorâmica nacional da História da Filosofia.


(P.) 3 – Publicou em 1977 o Vol. I de um estudo intitulado “O Pensamento Politico de Platão” que é uma obra pioneira no âmbito português. É o seu pensador preferido? Há um dito famoso que afirma que toda a filosofia ocidental é notas de rodapé de Platão, concorda?

(R.) De facto, Platão foi sempre o meu pensador preferido. Mas permita-me que lhe diga que na Antiguidade há filósofos, pelos quais tenho grande interesse e consideração, por aquilo que eles representaram.

Indicarei, por ordem cronológica, Anaximandro de Mileto, um pré-socrático, que me continua a fascinar pela sua concepção cosmológica de um rigor e de uma beleza impressionantes, assim como a sua teoria acerca dos seres vivos que se aproxima da teoria da evolução.

Protágoras de Abdera, o grande sofista do séc. V a.c., não apenas pela sua celebre afirmação segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas mas, também, por outros aspectos dos quais destaco dois: a sua teoria da evolução da humanidade, e a fundamentação do regime democrático que penso que é a primeira explicação das estruturas democráticas que existiram, sobretudo, em Atenas.

Após Platão, citarei Epicuro, cuja doutrina ainda nos nossos dias é sujeita a interpretações muito diversas. Em Epicuro tocou-me, fundamentalmente, a sua luta contra os temores que habitam o Homem; por exemplo, o temor representado pelos deuses e o terror representado pela morte. Este esforço de libertação do Homem, de conquista de autonomia sempre me fascinou.

A questão que o Luís me colocou é sobre Platão e já é tempo de falar deste filósofo. Sobre o fundador da Academia, escrevi o livro que foi citado por si assim como vários ensaios focando alguns aspectos do seu pensamento.

Obviamente, o esplendor platónico não me tocou só a mim mas, também, às gerações que percorreram os séculos até aos nossos dias. Os problemas que Platão levantou são aqueles, pelo menos em parte, que encontramos no pensamento contemporâneo. Não direi que os filósofos após Platão se limitaram a comentar a obra platónica. O que acontece, e eu já o referi nesta entrevista, é que há aproveitamentos mais ou menos explícitos da filosofia de Platão. Mas tenho de dizer que novos problemas surgiram e novas soluções foram aplicadas a antigos problemas.

O que encontrei em Platão e me encantou foram alguns aspectos sobre os quais tentarei ser breve.

Primeiramente o que gostaria de apresentar é respeitante à forma pela qual Platão apresentou as suas teorias. Todos sabemos que os livros do filósofo são diálogos, e em minha opinião (que não é original) a forma dialogada imitada até aos nossos dias não foi suplantada de forma alguma. Sabemos e, há consenso quanto a este ponto, que Platão foi um grande estilista e que o seu diálogo é uma obra-prima literária.

Para mim não é apenas o aspecto formal, ou seja, o seu brilhantismo que me toca, ainda hoje, profundamente. Estou convicto de que Platão não escreveu em forma dialogada apenas por uma questão literária; foi por uma intenção filosófica.

Em primeiro lugar, Platão devia estar preocupado em escolher uma forma literária que pudesse mais facilmente, persuadir os seus leitores. Não é, necessário é dize-lo, o primeiro pensador grego a levar em linha de conta, este propósito. Olhemos para os pré-socraticos; uns escreveram em prosa, outros em poesia; mas a prosa de Heraclito, por exemplo, não é idêntico à de Anaxágoras assim como a poesia de Xenófanes é diferente daquela utilizada por Parménides.

Quando digo que o diálogo platónico tem uma intenção filosófica tal quer significar que Platão não só expunha as teorias filosóficas nas suas obras mas apresentava também o percurso em direcção a essas mesmas teorias. Em Platão podemos detectar, com clareza, o que é o progredir através de uma investigação; quais são as dificuldades que se deparam e qual a maneira de as resolver. Desta forma, Platão mostra a dinâmica do pensamento para se atingir determinados resultados, pondo a claro os obstáculos, que a cada momento, podemos encontrar. Ora, se existe uma intenção filosófica parece-me, também, que há uma preocupação pedagógica, a qual deve ser sublinhada. O diálogo platónico encanta-nos, não só, pelo seu aspecto formal e filosófico mas, também, pela sua intenção pedagógica. Aonde eu quero chegar?

Nos seus diálogos o filosofo pretende mostrar como se deve avançar, quais os passos necessários para abordar e resolver uma determinada questão: é a metodologia que é delineada ao longo de um texto. Creio que numa leitura, mesmo rápida, podemos deparar com obstáculos, “cirurgicamente” colocados, o modo como podem ser ultrapassados mas, também, encontramos alguns problemas que são, apenas, aflorados para obrigar o leitor a encará-los de frente e a resolve-los. É como se fossem espalhados alguns enigmas, convidando-nos a decifrá-los.

O que acabei de dizer surge, ao que me parece com clareza, praticamente em todos os diálogos platónicos: citarei a título de exemplo o “Ménon”, o “Teeteto”, o “Filebo”. Podemos encontrar nos diálogos que citei a forma como deve ser conduzida uma investigação pela presença e acção do Sócrates platónico.

Atentemos, também, na delicadeza, no humor, no incitamento da personagem Sócrates, traços que devem estar presentes na pedagogia. Mostrar as dificuldades mas também entusiasmar e fornecer o alento para que a caminhada filosófica prossiga sem quebras.

Passar por uma apresentação dos temas de filosofia platónica e da sua importância seria uma tarefa longa e por isso, com brevidade, citarei, apenas, alguns que me parecem pertinentes. Não me deterei na teoria das ideias, a mais famosa e conhecida concepção platónica escolhendo três temas, para uma rápida apresentação:

- a politica, a educação e o estatuto da mulher.

Na antiguidade (Grécia e Roma) no respeitante à filosofia politica penso que Platão não foi ultrapassado. Dos diálogos em que o tema é essencialmente, a politica cito dois: a “Republica” (o mais celebre) e as “Leis”, ultimo diálogo de Platão.

A teoria platónica desenha a arquitectura de uma utopia, o estado justo na “Republica” mas as “Leis” não têm um carácter utópico na perspectiva de Platão. As “Leis” apresentam, com grande minúcia, a constituição e os órgãos do Estado. A análise das classes sociais e os seus rendimentos, a educação e o lugar da mulher na vida do Estado, são preocupações do filósofo a que juntaremos o código de leis, notável pela sua originalidade.

Sem me deter num problema, aliás extremamente interessante, que se discute ainda hoje, se Platão foi um democrata ou um totalitário direi que as “Leis apresentam, com amplitude, um grande conjunto de observações que nos dias de hoje merecem a nossa atenção. Voltando um pouco atrás, a propósito da lei, deveremos atentar num aspecto curioso: para Platão a lei deve representar uma intenção pedagógica. Assim a lei possui um prólogo que constitui uma exortação e uma explicação para não se cometer este ou aquele acto. Desta forma a lei não existe, apenas, para penalizar mas, também, para incutir ou desenvolver a virtude no cidadão.
Se a lei tem por objectivo melhorar os cidadãos, a educação persegue, por outros meios, o mesmo objectivo. Neste ponto, nomeadamente, Platão é original e foi necessário chegar, praticamente, ao séc. XX para se atingirem algumas metas da sua teoria educativa. Platão considerou a educação como um assunto do Estado, ou seja, ela é da sua inteira responsabilidade e a politica educativa é dirigida por um governante, apenas com essa função, ou seja, é criada a figura do ministro da educação. Acrescentarei, ainda, que o filósofo, também pela primeira vez, defende o ensino infantil e uma educação idêntica para rapazes e raparigas.

Quanto ao estatuto da mulher apontarei Platão como o primeiro filosofo a conferir uma maior dignidade ao papel da mulher, sendo justo destacar a acção de Euripides que no séc. V abordou de forma notável a situação da mulher. Platão ao considerar que a alma é de natureza idêntica no homem e na mulher, ambos podem possuir a excelência (a virtude) que, assim, é igualmente idêntica. Sendo assim, primeiro na “Republica” e, por fim, nas “Leis” a mulher pode ter a capacidade de ocupar cargos, tradicionalmente dirigidos para os homens.

Voltando um pouco atrás podemos ver que a mulher tem a mesma educação do que o homem e no final do ensino secundário ela fará o serviço militar com os mesmos exercícios e as mesmas exigências do que o homem.

Como já me alonguei no que me foi solicitado, apenas, mais duas notas.

O que me fascina em Platão são as suas incursões em variados domínios filosóficos que ele problematizou abrindo uma série de pistas para investigações posteriores.

Platão não foi um filósofo sistemático, aliás não o pretendeu ser e é por isso que não podemos falar, rigorosamente, de um sistema platónico. Em Platão, segundo me parece, assiste-se a um conjunto de tentativas, de abordagens, o que transmite ao leitor, mesmo ao não muito atento, uma noção de dinamismo filosófico.


(P.) 4 – Posteriormente tem publicado outros estudos em revistas da especialidade, revisitando o pensamento grego, mormente Platão. Para quando a sua publicação conjunta, dado que permanecendo dispersos arriscam-se a não ser salvos do olvido, o que entendo serem algumas das mais interessantes páginas da sua intervenção histórico-filosofica?

(R.) Antes de responder à pergunta, que o Luís me colocou, permita-me que faça duas considerações.

No meu horizonte coloco previamente duas tarefas:

1- reger um curso livre com temas da Cultura e da Filosofia Gregas, nesta Faculdade. Para mim a docência dá-me prazer, estimula o espírito sintético e auxilia-me a aprofundar e clarificar os temas que lecciono. Ora é o contacto com os estudantes e também com os meus colegas que me permite atingir, ou pelo menos, aproximar-me, destes objectivos.

A nível institucional fala-se da última lição, que tradicionalmente, é proferida na altura da jubilação. Não tenho nada contra esta tradição mas, penso que um professor nunca sabe qual vai ser a sua última lição; eu não sei se a minha última lição vai ser amanhã ou daqui a dez anos.

2- dir-lhe-ei que é minha intenção aumentar e melhorar a pagina da Internet, Os Dias de Demeter, da qual sou co-autor com o nosso colega José Augusto Graça. Os Dias de Demeter, é dirigida, essencialmente, aos estudantes do Departamento de Filosofia. Acrescentarei, por uma questão de elementar justiça, que esta página foi inspirada e apoiada por outro nosso colega, o Levi Malho, que foi o primeiro no Departamento de Filosofia a abrir uma página na Internet.

Quanto a publicações, neste momento, tenho duas no horizonte. Uma, será um Guia de Filosofia Antiga, cuja base será material já publicado em Os Dias de Demeter. Outra, será constituída por um conjunto de ensaios sobre Platão. Não serei categórico quanto a datas, direi apenas, que são intenções com probabilidade de serem atingidas.


(P.) 5 – Assiste-se hoje a um renovado interesse pela Filosofia Grega, talvez pela sede de sabedoria a que uma época de crise e de conflitos sempre conduz.
Gostaria de saber a sua opinião acerca da utilidade do pensamento antigo para o nosso tempo presente.

(R.) O Luís de Araújo tem toda a razão em afirmar que nesta época de crise em que estamos mergulhados encontramos um interesse renovado pela Filosofia Antiga.

Para falar, apenas, da Europa por nela estarmos inseridos é muito possível que procuremos a identidade europeia para melhor compreendermos o que somos.

Com frequência, olhamos para os sécs. XIX e XX à procura do itinerário percorrido que expliquem a arquitectura politica e cultural da Europa. Mas quanto mais recuarmos no tempo a compreensão torna-se mais clara e o nosso ponto de chegada é a Grécia Antiga.

É interessante recordar a propósito da Constituição Europeia a proposta para uma referência da tradição judaico-cristã, figurar no seu preâmbulo. Não vou discutir a pertinência de tal pretensão. Parece-me importante ter a consciência da sua importância mas lembrar, também, a presença da matriz greco-romana, a qual não vi referida com qualquer ênfase.

O que desejo dizer é que as raízes da civilização ocidental se encontram na Grécia Antiga e essa é uma das razões que nos levam a olhar para essa época.

Como já tive ocasião de referir nesta entrevista a edição dos textos filosóficos gregos e os estudos publicados no estrangeiro e no nosso país são muito numerosos. Para este interesse, creio que se deve por em relevo tal facto, muito contribuíram alguns dos grandes pensadores do séc. XX , que destacaram várias facetas da Filosofia Grega. O que me parece, de uma forma geral, o que fascina nos gregos, é o facto de eles terem colocado e tratado dos grandes problemas filosóficos que, hoje, ainda se mantêm.

Tentando ser agora mais concreto, focarei dois pontos que considero pertinentes:

1- o facto dos pensadores gregos não se preocuparem apenas pela informação, por um conjunto de conhecimentos mas, sim, por uma certa forma de ser e de estar que tornaria o pensador diferente dos seus concidadãos. A sabedoria constituía uma determinada postura, ou seja, na vida politica ou no quotidiano a sua acção era pautada pelos princípios na qual assentam essa mesma sabedoria.

Quando, hoje, vejo os aprendizes de filosofia ostentarem uma panóplia de conhecimentos ou de informações, mas que tal não implica um determinado estilo de viver e de actuar , considero que estamos perante figuras cinzentas e desinteressantes;

2- ligado ao primeiro ponto eu diria, hoje como ontem, que é fulcral a noção de formação. O que desejo dizer é o seguinte: o possuir muita informação e o transmitir essa mesma informação não é, na minha perspectiva, algo de fundamental.

Para utilizar uma linguagem mais própria dos nossos dias, eu apontaria como essencial o conhecimento, acompanhado pela prática, dos valores, o espírito crítico, a autonomia intelectual, cuja existência é fulcral, a noção de justiça que deve enformar os nossos actos: eis, o que considero fundamental, seguindo um itinerário que tem o seu ponto de partida nos pensadores gregos.

Sou categórico quanto ao seguinte: se não houver formação haverá desumanização. Aqueles que pensam que a informação resolvia todos os problemas estão, quanto a mim profundamente enganados. Informação sem formação pouca ou nenhuma coisa é, ou seja, temos a via mais rápida para o fracasso de uma sociedade que se pretende mais solidária, mais justa e mais culta.


(P.) 6 – Por fim em sua opinião, quais são a legitimidade e o lugar do filosofo nas sociedades contemporâneas, mormente na sociedade portuguesa?

(R.) Dir-lhe-ei, desde já, que estou pessimista quanto ao presente e futuro das sociedades actuais a nível nacional e internacional.

Sem ter a pretensão de apresentar uma lista exaustiva dos problemas, o que seria descabido neste lugar, que afligem o Homem de hoje citarei os seguintes: o desequilíbrio ecológico, o terrorismo, o cerceamento dos direitos humanos, a toxicodependência e a sida e algumas questões delicadas no campo da Biologia.

Penso que estes problemas são, já por si, suficientes para nos inquietarem e, pessoalmente, não vejo que num futuro próximo possam ser resolvidos. Creio, aliás, que alguns tenderão a agravar-se.

O desequilíbrio ecológico, por exemplo, fruto de um crescimento irracional da economia apresenta, hoje, uma gravidade que tenderá a acentuar-se, nas próximas décadas; mesmo que o acordo de Quioto, fosse levado a cabo com persistência e seriedade não evitará problemas graves num futuro próximo.

Quanto ao ponto que foquei, há praticamente uma unanimidade entre os cientistas. O que é grave é que há muitos anos se tenham lançado os avisos quanto à possibilidade do desastre em que estamos mergulhados. Nos anos 60 e 70 do século passado a chamada corrente ecológica politica e vários cientistas tinham prevenido quanto à urgência de modificar o modelo de crescimento que então, se processava. O desastre a que estamos a assistir assenta num modelo completamente inadequado para a nossa sociedade. O crescimento económico não levou em linha de conta os delicados equilíbrios existentes na Natureza; a fé cega no aumento económico continuou a privilegiar alguns (em termos de riqueza) e a prejudicar gravemente um grande número de indivíduos (sob o aspecto económico e social).

O actual modelo de crescimento leva pelo menos em parte, à fome e à doença que flagelam vastas zonas do planeta.

Sabemos, hoje, que é defendido o desenvolvimento sustentável o qual respeita um crescimento, respeitando o ambiente e a justiça social. Tentarei continuar a ser claro quanto a este problema: mesmo implantando a concepção do desenvolvimento sustentável, o futuro próximo nunca será agradável.

Penso que aqueles que têm responsabilidades filosóficas deverão lutar por este tipo de desenvolvimento para minimizar, ao longo dos tempos, os estragos já ocorridos. Acho justo destacar, em Portugal, os estudos e intervenções de um grupo de pensadores sobre a ecologia. Foram eles que iniciaram, no nosso país as investigações em Ética Ambiental.

Quanto à questão dos direitos humanos, não podemos estar tranquilos quanto ao respeito que devem merecer. Não obstante as Declarações e o Direito Internacional , não se evitaram, na própria Europa, atropelos brutais nos finais do séc XX. O nosso século continuou a linha anterior: basta ver o que se passa no Médio Oriente para chegarmos à conclusão de que matar, torturar e humilhar são praticas comuns.

O que já disse mostra que a Declaração dos direitos humanos está a ser violada em larga escala e possivelmente em todos os continentes.

Há um cerceamento da liberdade, há medidas restritivas tomadas em nome do terrorismo. O terrorismo, um dos grandes flagelos do nosso tempo, tem sido combatido de uma forma desastrosa: as intervenções militares, sobretudo no Iraque tiveram um resultado perverso. Gostaria, agora, de fazer duas considerações:

1- a luta contra o terrorismo não pode justificar uma limitação dos direitos humanos o que representaria uma vitoria dos próprios terroristas;

2- o combate ao terrorismo deve-se fazer através dos serviços secretos e das policias. A humilhação infligida aos povos ocupados (no Iraque e no Afeganistão) e o que se passa na Palestina deve ter um fim rápido. O diálogo entre civilizações deve ser incrementado: governos, organizações não governamentais e universidades deverão empenhar-se nesse desígnio. O esforço de compreensão do Outro pode ter resultados encorajadores mas devemos estar preparados para uma longa coabitação com o terrorismo. Os terroristas de hoje têm objectivos e pertencem a grupos sociais diferentes daqueles que existiram no passado; é isso que torna a questão ainda mais difícil.

Quanto aos regimes democráticos a situação não é brilhante: a questão dos direitos humanos, a que já fiz referencia, a corrupção em larga escala, a atitude confusa perante a globalização, a mistura entre economia e politica e o afastamento dos cidadãos em relação aos órgãos políticos são alguns dos problemas que minam os regimes democráticos.

Estamos perante uma tarefa gigantesca a realizar, e aqui é irrelevante falar-se em curto prazo. A refundação do estado democrático, se houver coragem para a realizar, terá de levar em linha de conta os problemas que indiquei mas também não esquecer que os Estados se agrupam em uniões e que se inserem, igualmente, numa perspectiva de globalização cujos resultados, são incertos.

Mais uma vez não serei exaustivo e direi, também, que não apresentarei qualquer panaceia, porque não a tenho, para este conjunto de problemas que encontramos no Estado contemporâneo. Penso que a sociedade civil se deve organizar através das Ongs, tendo como objectivos, entre outros, apresentar propostas e pressionar o Poder Politico; quanto mais organizada e forte for a sociedade civil maior será a possibilidade de êxito.

Passarei, agora, a dois flagelos que me impressionam vivamente: a sida e a toxicodependência. Parece-me que o grande esforço terá de se fazer no campo da prevenção, o que vem acontecendo, o que não exclui, no caso das drogas, o combate mais amplo possível ao narcotráfico.

No que diz respeito, apenas à toxicodependência interrogo-me frequentes vezes, sobre as causas, as motivações, a sedução que podem conduzir, sobretudo o jovem de qualquer extracto social a tornar-se um consumidor de drogas.

Concordo com as chamadas “salas de chuto” e com a terapia de substituição. Mas para alem destas medidas que devem ser tomadas, entre outras, para mim continua a ser fundamental compreender as razões que levam, sobretudo, a uma longa dependência, caminho que conduz à destruição, sob todos os aspectos do indivíduo.

Tenho colocado a mim próprio a seguinte pergunta: será um vazio, uma ausência de objectivos, uma enorme desilusão que levará o jovem (pelo menos em parte) a mergulhar na droga?

Se assim for, e não posso ser categórico nesta apreciação, seria necessário incutir na juventude, um determinado sentido de vida, uma esperança, uma consciência de valores.

Falando ainda de toxicodependência direi que ela constitui um problema do Estado, da Sociedade e de todos nós. O que me impressiona, também, é que não se considere como uma ameaça à própria sociedade; é que ela mina, cada vez mais, a própria sociedade constituindo assim, uma doença da própria civilização.

Uma palavra quanto à sida: a sua existência e progressão são alarmantes, e penso, sobretudo nos jovens, nas suas relações amorosas sobre as quais paira essa tremenda nuvem negra. Quanto à sida sou de opinião que ainda não se fez tudo o que está ao nosso alcance.

Como a minha resposta já vai longa gostaria de fazer algumas considerações breves sobre dois problemas:

O primeiro problema a que me quero referir é respeitante a temas que se colocam no domínio da Vida, para utilizar uma expressão de grande latitude.

A interrupção voluntária da gravidez, da qual sou defensor, a eutanásia, a utilização das células estaminais, são temas, que estão na ordem do dia. Entre outros são temas que caem no âmbito da chamada bioética, e como a própria designação pressupõe conduz à reflexão ética sobre estes temas.

No nosso país, infelizmente, as chamadas comissões de bioética não cumprem a sua finalidade porque estão ancoradas em bases morais; as declarações sobre bioética têm sido desastrosas em Portugal.

Eu compreendo e vejo até com satisfação, cientistas entre os quais se contam muitos do domínio das ciências da saúde, pronunciarem-se sobre os temas que há pouco mencionei. É bom dize-lo que qualquer cidadão tem o direito de opinar sobre tais matérias.

O que eu contesto é o facto de alguns profissionais do domínio das ciências da saúde apresentarem posições categóricas sobre este conjunto de temas.

Ora, as questões mencionadas não dão qualquer autoridade acrescida a médicos e a biólogos, pois o que se discute pertence a uma problemática de ordem ética sobre a qual, como já disse, todos podem dar a sua opinião e o filósofo não poderá furtar-se a tomar, também, a sua posição. Estes problemas têm sido inquinados por opções desta ou daquela moral e por preconceitos oriundos de profissionais para os quais existem opiniões privilegiadas.

Tenho a consciência de que as respostas que têm de ser dadas são delicadas e por vezes serão mesmo dolorosas.

Com a segunda digressão terminarei a minha resposta. O papel do filósofo perante todas as questões que levantei é importante e imperativo: tem de tomar partido e actuar. É necessário sair do comodismo de cor cinzenta em que alguns estão refugiados. A filosofia não é um jogo académico nem algo de abstracto, pois tem sempre por finalidade o que respeita à pessoa humana, à defesa da sua dignidade e o combate pela sua felicidade.

Tenho a consciência de que não é, e não será, uma tarefa fácil. O filósofo, como é tradição, pode ser alvo de ataque mesquinhos e medíocres e, por vezes, correrá o risco de ser marginalizado. Mas, a Filosofia implica uma certa forma de estar no mundo e essa natureza não pode ser negada ou ignorada mesmo em condições adversas.

Obs.: esta entrevista também pode ser encontrado no site da A.F.A. - Associação Filosofia Antiga sob Conteúdos/ Entrevistas ou directamente através deste link.

5 comentários:

Hook disse...

É com grande alegria que saúdo a criação deste "blog", pela qualidade pessoal e intelectual das pessoas que são responsáveis pela "AFA" e pela oportunidade e seriedade dos conteúdos já revelados neste primeiro "post"!

Votos de felicidades,

Levi Malho
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Bernardino Pereira disse...

Porto, 15 de Julho de 2007

Com certeza que a A.F.A tem em gestação muito para dar e, sobretudo, questionar.

Muitas felicidades,
Bernardino Pereira

Anónimo disse...

Não poderia pois deixar de participar neste espaço, saudando em primeiro lugar todos os envolvidos na criação deste espaço virtual.

E nesta medida deixo os meus votos de felicidades neste conjunto de átomos sob a forma de bits...

IVO AGUIAR

Anónimo disse...

O blog da Associação Filosofia Antiga (A.F.A.) é bem-vindo para dinamizar uma área tão relevante da história da filosofia.
Agradeço o convite que me fizeram com bastante apreço e, desde já, estou disponível para colaborar na medida das minhas possibilidades...
É indispensável e imprescindível a Filosofia Antiga no pensamento de qualquer de nós.

Foi com muito prazer e alegria que vi que a direcção é constituída por três dos meus antigos professores que muito contribuíram para a conclusão da minha licenciatura em Filosofia.

Anabela Azevedo

Anónimo disse...

Que surpresa agradável!
Encontrar quatro professores que tive a sorte e o prazer de conhecer e com quem muito aprendi.
Não é que esteja mais inteligente do que antes, mas agora tenho a consciência que tenho muito, tantoooo, para aprender.
Com eles não me senti pequenina, senti-me crescer, capaz de voltar a querer aprender. Voltei a ser curiosa... não como o gato!
Agora sei que os grandes Homens às vezes andam por aí, ao nosso lado na rua, e que pode calhar-nos a sorte de os ter como Professores e Professoras.

Felicidades, obrigada e até sempre (nem que seja por aqui).